Um filme com uma ideia de futuro Yonlu, feito dez anos após o suicídio de um jovem gaúcho e sete anos após Os Famosos e os Duendes da Morte, ainda observa o mundo virtual a partir de simplificações.
Texto de Felipe André da Silva
Na matéria intitulada “Canções para viver mais”, publicada na revista Rolling Stone Brasil, em março de 2008, o jornalista Marcelo Ferla traça um minucioso perfil póstumo de Vinícius Gageiro Marques. Era a primeira vez que se abordava, em toda sua complexidade, o suicídio do jovem portalegrense. No texto, o jornalista propunha uma discussão sobre os motivos que teriam conduzido Vinícius, artista com grande talento para a poesia, as artes plásticas e, sobretudo, a música, a cometer suicídio.
Sob a alcunha de Yoñlu, Vinicius era uma figura popular nos círculos virtuais que frequentava, o que contrastava com a figura reservada e, por vezes, autodepreciativa que exibia na vida fora da rede. Diferente do espaço virtual que conhecemos hoje, onde a hiper exposição se tornou comum, a internet de 2006 vivia uma outra dinâmica. Ser alguém no mundo virtual de dez anos atrás era uma experiência muito mais libertadora e instigante do que aquela proporcionada pelo aspecto binário atual – a internet, então, era gerida por um sentimento anárquico.
A certa altura do texto, Ferla cita um depoimento deixado por Yoñlu em seu já desativado blog pessoal que diz: “Hoje eu voltei para casa pensando em suicídio, mas depois de ler todas estas palavras gentis resolvi adiar”. É difícil precisar as intenções de um artista, sobretudo depois de sua morte, mas todo o compilado sobre o imaginário do jovem parece apontar para uma direção contrária àquela abraçada por uma imprensa viciada em tragédias cíclicas. Caso não houvesse encontrado apoio no fórum online que frequentava, Vinícius não teria sido demovido da ideia de suicídio. A tentativa de demonizar um ambiente de caráter tão mutável e volátil soa, simplesmente, a sensacionalismo.
Dois anos depois desse texto, o cineasta paulista Esmir Filho lançaria seu primeiro longa-metragem, Os Famosos e os Duendes da Morte. Escrito em parceria com Ismael Cannepele, autor do livro homônimo, o filme é uma breve crônica da vida de um adolescente preso à pacata vida de uma cidade no interior gaúcho. Ele deseja, desesperadamente, se livrar da monotonia e do peso que assola os moradores locais, e fugir para a cidade grande, onde, em breve, seu ídolo maior, o cantor Bob Dylan, fará um show.
Os personagens do filme estão presos a essa vida sem muito propósito que corre vagarosamente pelas ruas da pequena cidade. Para eles, a internet é a única janela para uma possibilidade de mundo e, mais especificamente, de um mundo que difere daquele onde, de tempos em tempos, um morador em aflição se atira da ponte da cidade em direção ao rio. De certa forma inovador tanto temática quanto esteticamente, Famosos... se apresentava como um raro exemplar de filme que olhava para o jovem brasileiro com absoluta franqueza, sem tratar sua presença constante no mundo virtual como algo próximo da patologia. Se estabelecia muito claramente uma ideia de fuga, de ambiente onde o auxílio – mesmo que na forma de um blog onde as angústias podiam ser despejadas – era completamente possível.
Não é possível precisar se a história de Yoñlu teve alguma influência sobre Cannepele ou Esmir, mas tanto a reportagem quanto o filme despontavam como exemplos claros de que algo de errado começava a se evidenciar na juventude brasileira, se não mundial. A predileção pelas relações virtuais não era simplesmente um sinal da liquidez das relações modernas. Constantemente tratada sem grande atenção, a saúde mental dos adolescentes começava a acentuar a curva que resultou no panorama atual: 29% da população brasileira de 18 a 25 anos sofre de algum grau de depressão. As razões para isso são inúmeras, mas se há algo a unir quase todos os casos é a falta de atenção que pais, educadores e a sociedade dão para os sinais de que algo não vai bem.
Essa narrativa da desatenção por parte dos pais não se encaixa, porém, na história de Vinícius, o Yoñlu. Muito por conta dos aspectos de superdotado que carregava, o jovem, que vivia num seio familiar esclarecido, sempre teve acompanhamento profissional, reforçado quando os sinais depressão foram se tornando mais evidentes.
Todos esses detalhes fazem com que seja frustrante que Yonlu (sem o til, por opção
do diretor, como forma de “universalizar” o nome), filme do gaúcho Hique Montanari,
lançado mais de dez anos depois do caso, retome o caminho reducionista e
supostamente didático da cobertura midiática da época.
O problema que afeta toda a estrutura e intenção do projeto está concentrado num
caminho narrativo que o diretor se propõe a tomar logo de saída: apesar de iniciar o
filme com uma estética fragmentada e abstrata, adequada a um mergulho na mente
do adolescente gaúcho, Montanari logo cede o foco a uma recriação fictícia de uma
entrevista concedida pelo terapeuta do rapaz a uma jornalista local. Não se trata de
lidar com a frustração de uma expectativa sobre o que o filme poderia ter sido, mas de
apontar a terrível escolha da segmentação binária entre “a internet cheia de males” e
“o mundo real cheio de possibilidades”. É, inclusive, interessante perceber como
Famosos…, filmado tantos anos antes, seja tão mais coerente e esclarecedor desse
universo do que um produto recente, cuja pesquisa parece não ter atentado o bastante
para as mudanças no universo virtual.
O caráter lúdico da escolha de Montanari chega ao ponto de tratar a maioria das
cenas que se passam no universo virtual com um esquema de cores verde-analógico,
atrelando a dureza do tom a uma falta de dinamismo. Como contraponto a isso,
temos, no filme, toda a possibilidade de cor do mundo real, com as ruas que Vinicius
fotografa com sua câmera 35mm, suas pinturas e até mesmo com o preto e branco
extremamente estilizado que surge em seus encontros com Luana, garota por quem
se apaixona.
Para aqueles que acompanharam Yoñlu por tantos anos e mantêm a figura do artista
viva no imaginário, toda essa construção soa, simplesmente, a panfleto de autoajuda.
O filme parece acreditar muito em sua capacidade de auxiliar um possível jovem em
sofrimento; mas, também nisso, não é muito feliz. O que ainda ajuda a manter a
proposta em pé é a competente performance de Thalles Cabral, que garante um
sentimento de dúvida e pesar ao personagem título.
O próprio Thalles, enquanto ator e cantor, é um bom exemplo de uma geração que
cresceu tendo que decodificar um sem número de novos códigos sociais, que
circundam o espectro virtual ou não, e, felizmente, na maior parte das vezes, soube
usar isso a seu favor. Há não muito tempo, era um pouco mais raro, e geralmente
visto como fenômeno, que um jovem explorasse sua veia artística e tomasse isso
como carreira desde cedo.
O tempo que separa a tragédia de Yoñlu, o cinema de Esmir Filho, a música de
Thalles e tantos outros acontecimentos que validam o poder de um olhar cheio de
frescor, marcaram também a afirmação de que há espaço para que todas as vozes
sejam ouvidas. Mas, antes disso, é preciso tentar compreender o que move essas
pessoas. Há ainda uma incapacidade de se entender a vida virtual em todas as suas
complexidades e nos reais efeitos que ela tem no dia a dia, para mal ou para bem.
Esta é uma questão importante de ser discutida e que, se tratada da forma adequada,
pode contribuir para que o processo de amadurecimento de alguns jovens seja menos
turbulento. E o melhor caminho para isso é o diálogo franco e o olhar não reducionista.
Yoñlu foi um grande artista. Teria sido muito maior se ainda estivesse vivo.
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