Publicado em 21/09/2024

Susanna Lira - Festival do Rio - Meu Redentor - Troféu Redentor - Première Brasil

Por João Vitor Figueira

Nota do editor: esta matéria faz parte da série especial #MeuRedentor, que celebra personalidades do cinema brasileiro que estão marcadas na história do Festival do Rio com trabalhos que se destacaram na competição da Première Brasil. Novas páginas desta história serão escritas na cerimônia de encerramento da edição de 2024 do evento, que acontece entre os dias 3 e 13 de outubro.

A cineasta Susanna Lira era uma caloura universitária de apenas 17 anos quando, ao chegar um pouco atrasada em uma aula na faculdade de Jornalismo, deparou-se com uma obra cinematográfica que mudaria seus planos de carreira e toda a trajetória de sua vida.

Naquela aula, Lira assistiu pela primeira vez ao revolucionário documentário Cabra Marcado para Morrer (1984), obra magna do saudoso Eduardo Coutinho (1933-2014). O que, para outros alunos, pode ter sido apenas mais uma atividade pedagógica corriqueira, foi um momento definidor para a jovem estudante. Fascinada pelo ousado formato híbrido do clássico longa-metragem, Susanna compreendeu que o cinema documental poderia expressar suas inquietações artísticas de uma forma que o jornalismo tradicional não conseguiria.

Susanna Lira apresenta o documentário Clara Estrela no Festival do Rio 2017 - Foto: Davi Campana/R2
Susanna Lira apresenta o documentário Clara Estrela no Festival do Rio 2017 - Foto: Davi Campana/R2

Após 20 anos de uma bem sucedida carreira no audiovisual, Susanna Lira se consolidou como uma das maiores referências do cinema documental brasileiro. A diretora e roteirista é dona de uma filmografia extensa e eclética, com passagem pelos formatos de curta, média e longa-metragem, além de acumular vasta experiência em séries de TV, e de fazer incursões cada vez mais frequentes ao território das narrativas ficcionais.

"A minha vida mudou com o Festival do Rio, porque eu nunca fiz um curso de cinema. Eu sempre digo que eu aprendi a fazer cinema vendo os filmes no Festival do Rio. Eu era aquela pessoa que comprava o passaporte e assistia a 40 filmes, enfim, fazia aquela maratona", revela a cineasta. Para ela, que já exibiu seus trabalhos em 10 diferentes edições do evento, quando um de seus filmes não é lançado no Festival do Rio, "é como se ele não estreasse".


Susanna Lira na sessão de gala do filme Porque Temos Esperança no Estação Rio no Festival do Rio 2014 - Foto: Christian Rodrigues/R2

Realizadora prolífica, a cineasta de assinatura própria tem um cinema marcado por seu olhar sensível às questões sociais, sempre em diálogo com temas urgentes e contemporâneos, refletindo sobre a condição humana a partir de personagens anônimos e famosos, sobre os desafios da sociedade brasileira e até mesmo sobre as dores de sua própria trajetória pessoal, como visto no documentário Nada Sobre meu Pai (2023).

No Festival do Rio, a diretora é uma das personalidades que conquistaram mais vezes o cobiçado Troféu Redentor na Première Brasil, vencendo quatro prêmios e uma menção honrosa, números que fazem dela a documentarista mais premiada da história do festival.

"Ter um Redentor no currículo é muito transformador"

Positivas, de Susanna Lira - Foto: divulgação
Positivas, de Susanna Lira - Foto: divulgação

Em 2010, Susanna Lira lançou o documentário Positivas no Festival do Rio, fazendo sua estreia pessoal como realizadora na maratona cinéfila carioca. "Eu não esperava nem que esse filme fosse selecionado", assume a diretora, que avaliava que o tema de seu filme poderia não ter apelo para os curadores.

O longa-metragem traz uma abordagem sensível e humanizada sobre um grupo de mulheres que contraíram o vírus HIV em relacionamentos heterossexuais estáveis, acompanhando a luta delas contra o preconceito, suas esperanças em medos.

Susanna Lira no Odeon para apresentar Positivas no Festival do Rio 2010 - Foto: André Maceira/Festival do Rio
Susanna Lira no Odeon para apresentar Positivas no Festival do Rio 2010 - Foto: André Maceira/Festival do Rio

No dia da cerimônia de premiação do Festival do Rio 2010, a cineasta nem sequer compareceu ao Cine Odeon por imaginar que seu filme não estaria entre os laureados. Positivas, entretanto, conquistou o carinho do público e venceu o Troféu Redentor de melhor documentário pelo Júri Popular, marco que alavancou a carreira do filme e o impulsionou para diversas outras mostras do Brasil e do mundo.

"Ter um Redentor no seu currículo é muito transformador, o mercado audiovisual, o mercado cinematográfico, já te enxerga de outra forma", avalia a cineasta. "A partir daí eu consegui fazer muitos filmes, mas essa bênção que o Positivas recebeu no Festival do Rio foi muito importante para minha carreira, e eu não consigo nem imaginar a minha vida sem esse Redentor, porque ele realmente abriu as portas para muitas outras coisas que vieram."

Tratar de um tema tão sensível no longa-metragem fez Lira, formada em jornalismo e ávida por estudos, fazer uma pós-graduação em direitos humanos. "Essa premiação, que fez esse filme ter essa repercussão, realmente foi o que me impulsionou a entender a responsabilidade que eu tinha ao tocar em assuntos sociais", revela a diretora, que também é pós graduada em direito internacional e filosofia. Para ela, investir em sua formação acadêmica é uma maneira de ampliar suas capacidades como cineasta.

Um reencontro especial


Uma Visita Para Elizabeth Teixeira, de Susanna Lira - Foto: divulgação

Um ano depois do sucesso de Positivas na Première Brasil, Lira voltou ao Festival do Rio para promover o curta-metragem Uma Visita Para Elizabeth Teixeira, que traz como personagem principal a líder camponesa retratada em Cabra Marcado Para Morrer (1984).

Na programação daquela edição, o curta foi exibido antes das sessões de As Canções, último filme finalizado por Coutinho em vida. Além de se reencontrar com a figura que a fez ter orgulho de ser documentarista, a Lira presenciou — e promoveu — o reencontro do diretor com aquela que é a maior personagem do universo coutinhesco.

Eduardo Coutinho no Festival do Rio 2011 - Foto: Roberto Bonifácio/Festival do Rio
Eduardo Coutinho no Festival do Rio 2011 - Foto: Roberto Bonifácio/Festival do Rio

"Foi um dos momentos mais incríveis da minha vida", recorda Lira. "Primeiro porque eu pude agradecer pessoalmente ao Eduardo Coutinho por ter me inspirado a me tornar uma documentarista, e segundo por ter a oportunidade de levar a Dona Elisabeth para o palco do Odeon e reencontrar o Eduardo Coutinho." Foi ali, diante de centenas de espectadores, na principal sala do Festival do Rio, que os dois se viram pela primeira vez após décadas.

Três prêmios e uma nova fase em sua carreira

Torre das Donzelas, de Suzanna Lira - Foto: divulgação
Torre das Donzelas, de Suzanna Lira - Foto: divulgação

Na edição de 2018 do Festival do Rio, Susanna Lira voltou para casa da noite de premiação com nada mais, nada menos, que três Redentores. A cineasta venceu os prêmios de Melhor Documentário, Melhor Direção de Documentário e Melhor Documentário pelo Júri Popular por Torre das Donzelas.

"Eu acho que o sucesso do filme se deu porque a gente estava carente de saber como resistir a essa política tão ardilosa que a gente tem vivido sem sucumbir", avalia a cineasta. Torre das Donzelas acompanha o reencontro de mulheres, incluindo a ex-presidente Dilma Roussef, que foram presas por lutar contra a ditadura militar, enfrentando a prisão política e a tortura na ala feminina do Presídio Tiradentes, em São Paulo.

Susana Lira após a premiação no Festival do Rio 2018, ano em que a cineasta venceu o Troféu Redentor três vezes — Foto: Reprodução/Instagram @susannalira
Susana Lira após a premiação no Festival do Rio 2018, ano em que a cineasta venceu o Troféu Redentor três vezes — Foto: Reprodução/Instagram @susannalira

"É um filme que mostra que em situações extremas, se a gente for inteligente e se a gente usar o que a gente tem melhor do nosso lado feminino, a gente consegue sobreviver a coisas muito drásticas", comenta Lira sobre o projeto, que trata de temas dolorosos mas também consegue conjugar sentimentos positivos no espectador, uma vez que o filme celebra o companheirismo, a resistência e a sororidade daquelas mulheres.

Em termos formais, Lira considera que o longa elevou sua linguagem cinematográfica a um novo patamar. "Torre das Donzelas me coloca numa outra posição como diretora. É um filme que tem uma ousadia estética, uma narrativa muito inovadora, e me coloca num outro lugar de responsabilidade e de dever de sempre estar pensando na linguagem documental como algo muito importante e algo que tem que ser renovado."

Damas do Samba e o paralelo com a trajetória feminina no cinema

Damas do Samba, de Susanna Lira - Foto: divulgação
Damas do Samba, de Susanna Lira - Foto: divulgação

Damas do Samba, que recebeu uma menção honrosa no Festival do Rio 2013, reconta a história do gênero musical símbolo do Brasil pela perspectiva das mulheres, que tiveram uma importância fundamental em sua construção e consolidação, trazendo depoimentos de figuras como Beth Carvalho, Dona Ivone Lara e Leci Brandão.

Susanna Lira compara a trajetória das mulheres no cinema com as mulheres do samba, onde por muito tempo as vozes masculinas predominaram. Ela aponta que no cinema, embora as mulheres estivessem presentes como produtoras e roteiristas, elas raramente eram protagonistas nas decisões — o que tem mudado nas últimas décadas.


Damas do Samba, de Susanna Lira - Foto: divulgação

"Eu acho que a trajetória do Damas do Samba é um paralelo, sim, com a trajetória das mulheres no mercado audiovisual, porque hoje em dia a gente está conseguindo colocar as nossas impressões, as nossas ideias, a gente está conseguindo ter a nossa voz no cinema, a gente está ganhando espaço", avalia.

Lira, que começou no documentário, tem se dedicado cada vez mais à ficção e busca se aprimorar como diretora nesse formato, já explorado em séries de TV como Rotas do Ódio (2018 - presente) e Não Foi Minha Culpa (2022).

O cinema como sacerdócio


Susanna Lira - Foto: divulgação

Susanna Lira já afirmou que entende sua dedicação ao cinema documental como um sacerdócio e que quem se dedica ao formato leva uma vida "praticamente franciscana". Por sentir que o mercado ainda não reconhece o valor do gênero, a diretora celebra o destaque que produções não-ficcionais tem no Festival do Rio, ressaltando o papel do evento em trabalhar o fomento com o público.

Lira também reflete sobre o papel fundamental do documentarista, que, segundo ela, precisa capturar temas que transcendem o momento e possam oferecer um entendimento mais profundo das questões atuais para as gerações futuras. Mas seja no documentário, seja na ficção, a diretora se diz instigada a trabalhar para responder suas "inquietudes" e as "grandes perguntas que eu tenho sobre pessoas".

"Assim fiz várias biografias: Clara Nunes (Clara Estrela), Mussum (Mussum, um Filme do Cacildis), Casagrande (Casão - Num Jogo Sem Regras), várias outras. Também fiz, como diretora convidada, Adriano Imperador. Eu, cada vez mais, quero abordar temas sociais. Questões de direitos humanos, raça e gênero sempre atravessam as minhas obras e sempre vão estar na minha perspectiva", comenta.

Fernanda Young: Foge-me ao Controle, de Susanna Lira - Foto: divulgação
Fernanda Young: Foge-me ao Controle, de Susanna Lira - Foto: divulgação

A diretora conta que reflete sobre cada biografado antes de começar um projeto e tenta entender como aquela pessoa gostaria de ser retratada. Foi isso que ela levou em consideração ao produzir Fernanda Young: Foge-me ao Controle, seu mais recente longa-metragem, em cartaz nos cinemas. Lira acredita que um filme sobre a autora deveria refletir a "ousadia", "poesia" e "caos" que caracterizavam sua personalidade e escrita. 

"Ela se ressentia muito de não ser lida e de não ser respeitada para o mercado literário. Então a gente faz no filme aquilo que eu acho que ela gostaria que as pessoas soubessem: o quanto a escrita dela era contemporânea, era relevante, o quanto que ela entendia, principalmente, nós mulheres, e o quanto que ela era uma porta-voz de várias inquietudes nossas."

No IMDb, Susanna Lira aparece com créditos de direção em mais de 50 produções de diferentes formatos. Tudo isso em 20 anos de carreira. "O meu trabalho realmente dá um sentido para a minha vida. Eu não consigo nem explicar para as pessoas a alegria que eu tenho de poder ter encontrado a minha vocação e fazer aquilo que eu amo fazer."

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