Salão de Baile: documentário celebra potência cultural e artística da comunidade LGBTQIAPN+ periférica Documentário traz para a tela a vivência de diferentes corpos dissidentes de pessoas não-binárias e transmasculinas, mulheres trans e travestis. Filme também aborda os conflitos que surgem nos bailes e discute a exposição de pessoas marginalizadas no audiovisual
Salão de Baile, de Juru e Vitã
Por Laís Malek
Durante 94 minutos, o Cine Odeon - CCLSR se transformou em um verdeiro ballroom. A exibição de Salão de Baile foi uma imersão completa na cena ballroom carioca. Na tela, o filme construía a atmosfera desse universo, mostrando os momentos de festa e acompanhando as principais figuras, e na audiência as palmas, assobios e gritos do público demonstrava o funcionamento desse movimento LGBQTIAPN+ periférico. O filme de Juru e Vitã foi exibido como parte da competição oficial da Première Brasil do Festival do Rio 2024, seguido de um debate com os espectadores.
Para levar ao público o ambiente da cena ballroom, os diretores se juntaram com diversas casas cariocas para promover um baile especial, sediado em Niterói. As casas, ou houses, no original, são pequenas comunidades formadas por pessoas LGBQTIAPN+, em sua maioria mulheres trans, travestis e homens gays. Elas são chefiadas por uma mãe, que desempenha o papel de acolher e incentivar seus filhos não só na cena, mas na vida.
Os bailes funcionam como um portal para um universo de performance, música, dança e celebração de corpos marginalizados pela sociedade. Através de categorias — que variam desde a beleza do rosto até uma performance de quem consegue rebolar mais, o batekoo —, as participantes exibem seu talento na pista e competem por troféus, chamados de grand prizes. A potência da arte periférica leva para a tela um caminho alternativo ao futuro sombrio que é esperado para a população LGBQTIAPN+.
Salão de Baile, de Juru e Vitã
“Quando a gente fala de travesti, infelizmente se lembra da prostituição de primeira. E provavelmente, se pensa em uma travesti marginalmente, então ver essas travestis que estão aqui traz uma outra perspectiva da travestilidade. E precisamos lembrar também das pessoas transmasculinas e não-binárias da nossa cena”, analisa Maghelli, uma das integrantes do elenco.
Esse senso de coletividade se refletiu no processo do longa. Os diretores contam que tiveram muitas discussões com o elenco sobre quais caminhos deveriam tomar, especialmente nas questões mais delicadas. “Não tinha como ser diferente. A cena ballroom tem um histórico de muitas explorações e expropriações. Quando a gente resolve fazer um filme sobre esse tema hoje, não tem como não ser coletivo. É uma cena prolífica, profícua, criativa, e haverá muitos outros filmes sobre ela”, afirma Vitã.
Salão de Baile, de Juru e Vitã
O tema da ameaça da apropriação cultural também está presente no encerramento do filme. Mãe da House of Alafia, a casa que organiza o baile especial para o filme, Rothyer Kali encerra o longa de maneira impactante. Ela canta uma música autoral, olhando diretamente para a câmera, em uma letra que reforça essa mensagem.
“O pessoal super investiu na gente, se preocupando com a nossa segurança, dando tempo para a gente se arrumar. Foi uma troca maravilhosa, bem no estilo da comunidade do ballroom. Tive o privilégio de cantar uma música tão pessoal como Vela D7. Ali, eu coloquei tudo para fora. Só de pensar que uma pessoa como eu, periférica, que não tem oportunidades como essas estar passando por lugares como esse me deixa muito grata”, conta a artista.
Salão de Baile, de Juru e Vitã
Embora a cena ballroom seja um espaço de acolhimento, há também conflitos e intrigas pessoais. O filme capturou uma briga entre duas participantes do baile, mas com uma abordagem interessante. O documentário mostrou os momentos antes da confusão, e a tela ficou preta antes de as participantes chegarem às vias de fato. Vitã explica a decisão de manter a briga na narrativa, embora sem detalhar o que aconteceu.
“Foi a primeira coisa que aconteceu nas gravações, e afetou todo mundo. Foi um grande baque, e o tempo todo questionamos se levaríamos ou não para o filme. A decisão coletiva foi unânime: não mostrar a violência. O que vem depois, os conflitos, isso sim nos interessava, mas também não queríamos mostrar um lado ou outro da história. Foram várias versões de montagens até chegar a esse meio-termo, que é o que a gente considera interessante de se debater. A ballroom é um lugar de pessoas de classes sociais, trajetórias e entendimentos de mundo diferentes. Todo mundo se junta no baile, e coisas acontecem”, explica.
Salão de Baile, de Juru e Vitã
“Essa é a realidade, esse é um documentário sobre vidas. Se você pegar uma casa com um monte de mulheres ou homens cis, as pessoas vão brigar por conta do ego, por achar que uma coisa é mais certa ou melhor e quer impor isso para os outros. Nós temos conflitos como qualquer outra pessoa,e isso não pode ser marginalizado porque são corpos que fogem do padrão da sociedade”, explica a pioneira Makayla Sabino, que contou que há um sistema de afastamento e reeducação das participantes que se envolvem em brigas.
Mesmo com o palco do Cine Odeon - CCLSR cheio no debate, uma ausência foi sentida. Dominick di Calafrio, que fez parte do filme, foi homenageada por Maghelli no palco. “Uma travesti preta, retinta, periférica, que lutou de várias maneiras para trazer visibilidade para a pauta de pessoas que vivem com HIV e muitas outras questões. É uma referência dentro da Favela da Maré, mas também na cena ballroom e no Teatro do Oprimido. É um nome importantíssimo, e precisamos nos questionar sobre porque muitos de vocês nunca ouviram falar dela”, pontuou.
Equipe e elenco de Salão de Baile, de Juru e Vitã, durante debate com o público no Odeon — Foto: Kayane Dias
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