Ritual fúnebre do Brasil Juliana Costa escreve sobre "Chuva e cantoria na aldeia dos mortos", de Renée Nader Messora e João Salaviza
por Juliana Costa
Não é por acaso que ao menos dois filmes exibidos na Première Brasil do Festival do Rio acabam com rituais fúnebres. Dois rituais fúnebres indígenas. Dois filmes que tratam de territórios, de ancestralidade, do direito e do dever de enterrarmos os nossos mortos. Parafraseando Godard em Imagem e Palavra (outro destaque do Festival): [No Brasil] “Nunca fomos tristes o suficiente para enterrarmos nossos mortos”.
EmLos Silêncios, de Beatriz Seigner, os fantasmas da guerrilha armada, sem chão e sem corpo para enterrar, compartilham o funeral final com os indígenas insepultos, de terras arrancadas e cemitérios esquecidos. Um funeral fluvial, já que a terra não lhes pertence mais, nem como leito derradeiro.
Em Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, o ritual de passagem do pai de Ihjãc, que acaba sendo também o seu próprio ritual de passagem, o leva de volta à aldeia Krahô para assumir seu lugar na comunidade. Impossível não lembrar do indígena de Martírio (2016), de Vincent Carelli, apontando indignado as sepulturas de seus familiares para cobrar sua permanência na terra.
Na língua da lei, cemitérios são uma das provas processuais para a demarcação das terras indígenas. Na língua da terra, os cemitérios dizem: nós estávamos aqui antes. Estamos enterrados neste chão com nossos pais e irmãos. Na língua do céu, ajudar nossos mortos na travessia do rio, garante que eles não ficarão entre os vivos, cobrando sua dívida e repetindo a história. Para isso, Antígona enfrenta corajosamente o rei. Por isso, Creonte não permite que se velem os perdedores: para que não sejam lembrados, para que não deixem semente no solo.
Não é por acaso que ao menos dois filmes exibidos na Premiére Brasil do Festival do Rio terminam com rituais fúnebres: para lembrar que nossos mortos – indígenas, escravos, guerreiros da luta armada e todos os outros sem direito a chão – voltam agora para nos cobrar sua memória; para lembrar que um lugar se torna território a partir de nossas práticas culturais e não da sua posse estéril; para lembrar que ou enterramos nossos mortos ou enterramos o Brasil.
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