Retrato de Um Certo Oriente: viagem de Beirute a Manaus atravessa fronteiras de cultura e identidade Longa de Marcelo Gomes discute pertencimento cultural, relação com o outro e luta pelo território através de uma estética em preto e branco. Amazônia aparece como uma utopia de diversidade cultural e religiosa, em filme que captura trechos fundamentais para entender a história do país
Retrato de Um Certo Oriente, de Marcelo Gomes
Por Laís Malek
A ameaça de uma guerra iminente faz dois irmãos libaneses, católicos, fugirem para o Brasil em 1959. O motivo dá o pontapé inicial no enredo de Retrato de Um Certo Oriente, mas a história que se desenrola se transforma em uma incrível jornada de descobertas, através de relações familiares, amorosas, culturais e com a natureza. Rodado em preto e branco, o longa de Marcelo Gomes transforma paisagens já exploradas no audiovisual brasileiro e conta uma versão complexa da imigração libanesa para o Brasil.
Baseado no livro “Relato de um certo oriente”, de Milton Hatoum, o filme foi exibido no Cine Odeon - CCLSR na quinta-feira (9), e contou com debate com o público após a sessão. A obra faz parte da competição oficial da Première Brasil do Festival do Rio 2024. Em conversa com o público, o diretor contou que é fã do autor e que ele ofereceu toda sua obra para ele adaptar para o cinema.
“Escolhi esse porque é inadaptável (risos). Tem dois elementos muito importantes para mim e para a minha obra. O primeiro é a "outeridade", a relação com o outro, se colocar no lugar do outro e entender essa posição diferente. Esse é o grande antídoto para o fanatismo. Depois, vem a memória. O livro é um coral de vozes onde essas memórias são restauradas. E a partir disso se cura certos traumas do passado”, explica o diretor.
Retrato de Um Certo Oriente, de Marcelo Gomes
A trama acompanha Emilie e Emir, que fogem para o Brasil em um navio após o irmão resgatar a irmã do convento onde ela vivia. Ele embarca escondido para não pagar a passagem, e por isso precisa ficar confinado à cabine durante todo o primeiro ato, o que já revela ao público a sensação de aprisionamento do personagem. Sem as mesmas amarras do irmão, e recém-liberta de um outro tipo de confinamento, Emilie passa a explorar o navio e conhece Omar, um comerciante muçulmano que frequentemente viaja para o país sul-americano e a ensina a falar português.
Enquanto o relacionamento dos dois se desenvolve em uma atmosfera quase secreta, mas Emir logo toma conhecimento. Controlador, ele exige que a irmã se afaste do homem, de quem ele desconfia por ser muçulmano. Marcelo Gomes comenta o tema da intolerância religiosa. “O Emir se apropria de um preconceito para afastar o Omar da Emilie. E é o que a gente vê muito hoje, pessoas se apropriando do preconceito para adquirir poder, começar guerras. Não é sobre religião, é sobre querer um poder de dominação”, analisa.
Retrato de Um Certo Oriente, de Marcelo Gomes
Depois de chegar em Belém, a agora falante de português Emilie compra passagens para Manaus, destino de Omar. Os personagens deixam um navio rígido, opressivo e aprisionador para uma embarcação aberta, acolhedora e pulsante com vida. A irmã retoma o relacionamento com o comerciante, enquanto Emir se aproxima de um fotógrafo. No fundo, a paisagem da Amazônia se impõe em um misto de fascínio e terror, capturado pelo trabalho excepcional do diretor de fotografia Pierre de Kerchove.
No debate, ele contou que algumas das referências de fotografia foram Limite (1931), de Mário Peixoto; O Encouraçado Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein; além das técnicas de enquadramento presentes nas fotografias da paraense Elza Lima. Marcelo Gomes discorre sobre as escolhas estéticas “Não foi uma decisão minha, foi da Emilie. Eu não filmo do jeito que eu quero, mas como os personagens me dizem que tem que ser feito. Ela me disse que tinha medo daquela Amazônia, e nada melhor do que a floresta em preto e branco com suas sombras e seus cinquenta tons de cinza, e não de verde, para causar esse medo”.
Conforme o relacionamento de Emilie e Omar se aprofunda, cresce também a insatisfação de Emir. Ele a observa em todos os momentos: quando ela se movimenta no barco, nas fotos tiradas pelo amigo e até através da lente da câmera — mais um enquadramento diferenciado que traz a dimensão do controle do irmão. Tudo culmina em uma briga entre os dois homens, e a arma que Emir levou para ameaçar Omar acaba disparando contra ele. Quase sem vida, ele é levado pelo casal para uma povoado habitado por uma tribo indígena, orientados por Anastácia, uma mulher com quem Emilie fez amizade durante a viagem.
Retrato de Um Certo Oriente, de Marcelo Gomes
Na tribo, um curandeiro, pai de Anastácia, realiza um ritual indígena para salvar a vida de Emir. Enquanto esperam, Emilie e Omar rezam pelo rapaz — ela com um pai nosso, ele entoa a oração da necessidade para Alá. O diretor dá mais detalhes sobre a cena emblemática. “Fiquei imaginando o que está além do livro, como seria esse primeiro encontro com a população indígena amazônica. Sempre imaginei que ali poderia ser um lugar utópico, onde cada um pode ter seu deus e conviver na mesma arena, o oposto do que acontece hoje com todas essas guerras religiosas. É um sincretismo até na imagem”, explica.
A atriz Rosa Peixoto, que interpreta Anastácia, também comenta a importância do simbolismo da cena. “Por muitos anos, quando falavam sobre diversidade, apagavam os povos originários. A gente lida com o preconceito diariamente. O filme retrata três culturas e religiões diferentes vivendo de uma forma muito harmoniosa. A gente precisa de respeito, entender que a sociedade brasileira é diversa. Vocês trouxeram essa diversidade para gente e tivemos que aceitar para não sermos exterminados”, lembra ela.
Retrato de Um Certo Oriente, de Marcelo Gomes
A atriz Wafa’a Celine Halawi, que vive Emilie no longa, saiu do Líbano para acompanhar a estreia do filme mesmo diante de um momento de conflito no país, com o bombardeamento de Israel. Sob gritos de Palestina e Líbano livres e pedidos de cessar-fogo no Oriente Médio, entoados pelo público e reforçados pelos presentes no palco, ela deu mais detalhes sobre a decisão de fazer a viagem.
“Esse tema de tentar encontrar uma casa está muito ligado aos libaneses. Toda a minha vida foi assim, “o que fazemos?”, “é guerra, não é guerra”, e agora de novo. Estou aqui muito feliz, mas não sei como eu vou voltar, o que eu vou passar, não sei nada. É a aventura da vida libanesa, e isso é o que acontece também na Amazônia. Essa luta pela terra, que é muito desumana e tem que parar”, conclui.
Debate de equipe e elenco de Retrato de um Certo Oriente, de Marcelo Gomes, com o público — Foto: Kayane Dias
Leia também:- Baby: juventude, sobrevivência e relacionamentos conflituosos constroem mapa afetivo de São Paulo
- Meu Lugar é Aqui: diretor Cristiano Bortone revela o segredo de seu cinema que reúne luta e esperança
- Kasa Branca: Luciano Vidigal subverte o gênero 'favela movie' com ode à amizade na Baixada Fluminense
- Salão de Baile: documentário celebra potência cultural e artística da comunidade LGBTQIAPN+ periférica
- Manga d'Terra: protagonista Eliana Rosa solta a voz na sessão lotada do musical no Estação NET Rio
Voltar