Querido Trópico: potencial transformador do cuidado duela com a deterioração do corpo Filme de Ana Endara leva para tela o encontro entre uma mulher de negócios bem-sucedida, e sua cuidadora, Ana Maria, conforme seu Alzheimer avança
Querido Trópico, de Ana Endara
Por Laís Malek
Um universo separa as realidades de Ana Maria e Mechi. De um lado, uma colombiana, de origem humilde e grávida, precisando regularizar a situação da imigração para o Panamá. Do outro, uma mulher de negócios bem-sucedida, mas que se aproxima do fim da vida após descobrir uma demência e precisa de cuidados em tempo integral. É esse o enredo de Querido Trópico, que estreou no Festival do Rio 2024 na noite de sexta-feira (12) com uma sessão de gala com a presença da diretora Ana Endara. O filme faz parte da mostra Première Latina.
A trama começa quando a filha de Mechi, Jimena, oferece o emprego de meio-período para Ana María e promete ajudá-la a regularizar a situação no país. Logo, descobrimos que a gravidez da colombiana era uma farsa: ela fabricou a história para tentar ganhar simpatia e conseguir o visto de permanência no país. Embora a gestação não seja verdadeira, vemos o lado maternal de Ana María se aflorar nos cuidados que tem com a patroa. A doença avança com rapidez, e logo Jimena promove a cuidadora para trabalhar em tempo integral, o que faz o relacionamento da dupla se desenvolver.
Querido Trópico, de Ana Endara
As diferenças entre o contexto social e o passado de cada uma inicialmente cria um abismo entre Ana María e Mechi, mas a companhia e o tempo compartilhado passa a preencher o vazio. A experiência da colombiana, que passou 16 anos cuidando de idosos, dá a ela as ferramentas necessárias para tentar estabelecer uma conexão com a patroa, mas esta só acontece porque Mechi — que já havia passado por diversos cuidadores e nunca desenvolveu uma relação parecida — também se abre para a possibilidade.
"O filme é um encontro entre duas solidões. São duas mulheres, de mundos muito diferentes, que constroem uma ligação e se acompanham por um tempo", conta a diretora. A atuação de Paulina García e Jenny Navarrette, que emprestam para as personagens a dramaticidade necessária sem parecer exagerado ou inautêntico. A diretora também trabalha a fotografia para tratar com naturalidade, um caminho alternativo ao melodrana, a história das duas.
Sozinha em outro país, sem uma construção de futuro no horizonte e em situação jurídica irregular, Ana María vê suas angústias refletidas nas incertezas de Mechi em relação à sua condição. É através dos medos e dúvidas que a dupla se conecta, em um laço que cria raízes profundas em cada uma, ainda que breves. "A demência precoce é uma situação que te desconecta da vida, das pessoas amadas. Queria retratar uma coisa crua, mas talvez ao mesmo tempo um momento de esperança, em uma situação tão solitária e isolante como o Alzheimer", explica Ana Endara.
Querido Trópico, de Ana Endara
A solidão de Mechi é praticamente uma aura que a acompanha em todos os momentos. Sua enorme mansão está vazia: a filha Jimena se preocupa com sua saúde, mas tem uma abordagem mais prática e menos emocional. Não é à toa: as condições financeiras que dão à personagem o conforto e o luxo no momento de doença foram conquistadas com uma boa dose de sacrifício pessoal. No fim da vida, ela precisa recorrer a estranhos para receber o cuidado que não pôde dar à filha durante sua vida.
Mesmo que tenha dificuldades de encadear raciocínios conforme o Alzheimer vai avançando, Mechi ainda mantém certa lucidez. Ao longo dos dias, ela e Ana María passam de patroa e empregada a companheiras de vida e confidentes. A mudança em cada uma em relação ao início do longa é perceptível, ainda que as duas tenham finais bem diferentes.
Para a diretora, a metamorfose pela qual passam as personagens é um ponto fundamental da trama. "Queria retratar um momento em que essa pessoa, que se transforma em outra, pode alcançar, acompanhar ou viver com alguém que permita que ela seja essa outra pessoa que está se tornando. ", analisa a diretora Ana Endara.
Querido Trópico, de Ana Endara
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