Publicado em 08/10/2024

Equipe do documentário Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar — Foto: Kayane Dias

Equipe do documentário Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar — Foto: Kayane Dias

Se a prostituição é a “profissão mais antiga do mundo”, talvez tão antigos quanto sejam os estigmas relacionados à troca de favores sexuais por compensação financeira. Alvos de discursos carregados de julgamentos morais e desumanização, trabalhadoras do sexo conseguem enfrentar estereótipos ao tomar posse de suas próprias narrativas, sem deixar que suas vozes sejam distorcidas ou silenciadas.

O documentário Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar, encara esse tabu de frente, com uma proposta humanista muito evidente: deixar que, diante das câmeras, as próprias garotas de programa — e apenas elas — exponham suas histórias, dramas, alegrias e reflexões, sem tutela ou análises de quem não vive aquela realidade. O enredo acompanha as trabalhadoras da Vila Mimosa, a mais conhecida zona de prostituição do Rio de Janeiro.

Integrando a Première Brasil na competição principal, o filme foi exibido no Cine Odeon - CCLSR na tarde de segunda-feira (7), em sessão acompanhada de debate com a equipe do longa-metragem mediado pela cineasta Beth Formaggini. “Através da prostituição, a gente vai puxando um fio de temas femininos que dizem respeito a todas as mulheres”, comentou Alcazar ao falar sobre seu projeto.

“Cheguei na Vila Mimosa para falar de prostituição porque eu estava muito envolvida nesse tema”, recordou a cineasta, que antes havia assinado o texto da série de TV Me Chama de Bruna, pesquisou para um roteiro sobre Gabriela Leite, ativista pela plena cidadania das prostitutas, em um projeto ainda não lançado, e chegou a viajar para um congresso de prostitutas em outro estado.


Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar

Ao fazer sua pesquisa de campo, a diretora conta que o filme seria, na verdade, sobre outros temas:  “o machismo que mata, o capitalismo que é um flagelo, a falta de oportunidades, a dificuldade que é a mulher se colocar no mercado de trabalho e a maternidade, tema muito presente no filme que mexeu muito comigo.”

Filmar em um universo tão particular, que Alcazar já definiu como “uma pequena cidade dentro da grande cidade”, trouxe muitos desafios para o desenvolvimento de Quando Vira a Esquina, seja para conquistar a confiança das garotas de programa, para financiar o longa-metragem em razão de seu tema tabu ou mesmo para conseguir captar as imagens do documentário em um lugar tão avesso a câmeras e exposição para o mundo externo.

Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar
Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar

“A gente tinha muitas restrições. Cada plano que a gente fazia lá precisava ser previamente aprovado”, contou o produtor e codiretor de fotografia do filme, Roberto Berliner, que afirmou que Chris optou por usar apenas planos fixos para não correr o risco de, ao mover a câmera, não filmar, sem perceber, alguém que não poderia aparecer no longa-metragem.

“A Vila Mimosa não é um lugar para a câmera estar. Ninguém lá quer ser filmado. Claro que o plano fixo é uma prisão porque é instintivo virar a câmera quando tem alguma coisa acontecendo”, comentou Jacques Cheuiche, também codiretor de fotografia do filme, que também trouxe Renato Carlos na função.

Para Chris, escolha estética do filme foi também a mais ética, e fez com que a câmera fosse um observador que aguarda os acontecimentos, sem que a lente tenha a necessidade de ficar seguindo assuntos em um lugar que ela definiu como “caótico no bom sentido”.

Outro aspecto estético importante do filme está na presença imperiosa das cores nos cenários da Vila Mimosa, sejam conferidas pelas paredes ou elementos do cenário, seja pelo neon. A opção da direção de fotografia de mantê-las saturadas dão um tom onírico ao filme, segundo Formaggini, que fez uma alusão com a identidade visual do musical O Fundo do Coração (1981), de Francis Ford Coppola.

Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar
Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar

Cleide Almeida, que atua na Associação de Moradores e Amigos da Vila Mimosa, explicou no debate que tinha muita preocupação antes de convidar as trabalhadoras da zona de prostituição para participarem de Quando Vira a Esquina. A assistente social citou que fica preocupada com o uso inadequado da imagem das trabalhadoras do sexo, pois outras equipes de filmagem já descumpriram acordos lá, chegando a mostrar uma mulher que pediu para não ser identificada. Isso causou imensos transtornos para ela, que era casada, tinha um filho e fazia faculdade, mas preservava sua atividade como garota de programa de todos esses círculos.

Entretanto, com muito diálogo e negociação, Chris Alcazar e a equipe de Quando Vira a Esquina conquistaram a confiança das “meninas da Vila Mimosa”. Em função disso, o filme não é feito apenas de pessoas que não mostram o rosto. Muitas personagens do filme optam por aparecer para contar suas histórias, oferecendo um retrato plural das motivações e percepções que cada uma delas carrega sobre ser uma trabalhadora sexual. 

Há quem diga que a prostituição foi um escape para relacionamentos abusivos e violência patrimonial. Outras contam se sentir empoderadas em sua autoestima. Há também falas sobre sofrimento e a vontade de se ver em outra realidade.

Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar

Quando Vira a Esquina, de Chris Alcazar

“Foi gratificante”, comentou Ingrid, uma das garotas de programa retratadas no documentário que também esteve no Odeon para o debate. “Se tiver outra oportunidade, mostro o rosto quantas vezes for preciso porque é dali que eu tiro o meu sustento. Eu não tenho porque ter vergonha. O corpo é meu. É meu direito de expressão e liberdade.”

Célia Regina, outra personagem do documentário, agradeceu por poder contar sua história de vida no filme, dizendo que não se envergonha de expor esse lado de sua vida, mas que pretende seguir atuando de outras formas na Vila Mimosa, fazendo faxinas ou catando latinhas. “Eu acabei de fazer 50 anos e não tenho mais vontade mental de trabalhar com prostituição porque isso também é uma agressão mental. Quando a gente chega para trabalhar tem todo um ritual psicológico”, contextualizando que hoje trabalha em outra área, mas mantém o sentimento de pertencimento de classe com as demais trabalhadoras do sexo: “a gente é coração, é corpo, é alma, é sangue, é normal. Prostituta é gente.”

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