Publicado em 05/10/2024

Transamazonia, de Pia Marais
Transamazonia, de Pia Marais — Foto: divulgação

Por João Vitor Figueira

O filme Transamazônia, dirigido por Pia Marais, apresenta uma trama complexa onde a exploração da fé, a preservação ambiental, a cultura indígena e a delicada relação de um pai com uma filha estão em rota de colisão. O longa-metragem integra a mostra Panorama Mundial do 26º Festival do Rio e teve sua estreia brasileira no cinema Estação NET Botafogo, na última sexta-feira (4).

Com diálogos em inglês e português, a trama apresenta a história de Rebecca, que sobreviveu à queda de um avião na Amazônia e é considerada um milagre vivo na comunidade religiosa pentecostal liderada por seu pai, o missionário estrangeiro Lawrence Byrne. O filme uma coprodução entre França, Alemanha, Suíça, Taiwan e Brasil.

Origens do projeto

Em entrevista para o site do Festival do Rio, Marais contou que dois fatores inspiraram o projeto: uma viagem que ela fez para a Amazônia em 2015 e seu fascínio pela história real de Juliane Koepcke, que em 1971 passou 11 dias sozinha na floresta até ser resgatada após sobreviver a um acidente aéreo.

Transamazonia, de Pia Marais - Foto: divulgação
Transamazonia, de Pia Marais — Foto: divulgação

“Eu não consegui os direitos de adaptação da história, o que foi bom porque pude fazer uma coisa diferente”, avalia a cineasta de origem sul-africana e sueca. Em sua passagem pelo Brasil há quase 10 anos, a cineasta diz ter observado um cenário complexo na Amazônia profunda, que ela já descreveu como uma espécie de western contemporâneo marcado pela interação conflituosa entre indígenas, missionários e pessoas que exploram a floresta para lucrar com a destruição ambiental.

“Para algumas pessoas, talvez uma árvore derrubada vá alimentar a sua família por muito tempo. Podemos julgá-los? Eu não posso”, avalia a diretora, que levou essas contradições e complexidades para a história de Transamazônia, que explora essas zonas cinzentas da moralidade. “Trouxe isso na narrativa para que o público não diga que um personagem está correto e outro está errado, eu não queria essa clareza”, avalia.

Influências

No filme, madeireiras ilegais invadem as terras indígenas onde há atuação missionária, colocando Rebecca e seu pai no centro do conflito. O drama também lança mão de flertes com o cinema de gênero, com ecos de Carrie, a Estranha (1976), de Brian de Palma, e de Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock. “Eu pensava muito na questão do trauma, nas coisas que nos marcam e que seguimos vivenciando em nossas vidas”, disse a cineasta ao explicar o que a inspirou no clássico dirigido pelo diretor britânico.

Transamazonia, de Pia Marais — Foto: divulgação

O documentário Amy (2015), de Asif Kapadia, também informou a dinâmica do filme, assume a diretora: “Eu estava muito interessada nesta relação entre um pai que faz a filha encenar um papel como um fantoche”, conta. Rebecca e Lawrence tem uma relação marcada pela ambiguidade que se dá entre o amor fraterno e a relação de poder e exploração que existe entre pai e filha, uma vez que o religioso capitalizou a figura de curandeira da jovem para ganhar mais influência e poder.

“Para mim, a questão do filme está em se perguntar como podemos partir de um amor condicionado para algo incondicional, que não sei se será amor, mas sim o reconhecimento de um relacionamento sem essa condicionalidade”, comenta a diretora.

Atuações de destaque

A atuação de Helena Zengel no papel de Rebecca foi muito elogiada pela forma como a atriz comunica sentimentos tão profundos, mesmo falando pouco, trazendo uma intensidade no olhar e uma presença de cena marcante. “A atuação dela é muito internalizada, minimalista, mas eu senti que a Rebecca precisava me convencer. Eu precisava acreditar que ela tinha o poder de curar. E a Helena tinha isso”, conta Marais, que explicou que Zengel preferia não ensaiar muito para trazer mais naturalidade para a sua atuação. “Ela é muito intuitiva e gosta de se concentrar no momento presente. Ela gosta dessa intensidade e eu também”, explica Marais.

Transamazonia, de Pia Marais — Foto: divulgação

O jovem adolescente Hamã Luciano, que interpreta um dos protagonistas indígenas do filme, fez sua estreia como ator de um longa-metragem em Transamazônia. “O Silas faz o papel de persistir por aquilo que é dele, pelo que ele ama. Ele é corajoso, não tem medo de nada”, disse o ator, que carrega a tradição dos povos Sateré-Mawé (por parte de pai) e Ticuna (por parte de mãe), mora no Amazonas e interpreta um personagem que faz parte de um povo indígena fictício, chamado Iruaté.

Hamã foi descoberto pelo preparador de elenco Cláudio Barros, que incorporou elementos dos povos Saterê-Mawé, Asurini e Xavante ao compor a identidade da etnia fictícia Iruaté, vista em Transamazônia. “É muito importante levar para fora do Brasil o nosso modo de vida. A Pia poderia ter escolhido atores não-indígenas para o papel do Silas, mas ela escolheu um ator indígena e é muito importante ser reconhecido”, comentou o jovem talento.

Desafios da produção

Esteticamente, o filme tem sido celebrado pela crítica cinematográfica por seu visual envolvente. A direção de fotografia, assinada por Mathieu de Montgrand, foi elogiada por sua representação imersiva e atmosférica da floresta Amazônica. "Eu tinha muitas referências visuais. Eu e Petra [Barchi, diretora de arte] estávamos fascinadas porque obviamente a cor branca era muito importante para representar aquelas comunidades evangélicas. Obviamente o verde da floresta também é muito importante, então não queríamos muitas outras cores e usamos muitas cores claras, cores pastel", conta.

Pia Marais afirmou que a equipe de cinematografia teve de lidar com alguns grandes desafios na produção de Transamazônia em função da distância dos locais de filmagem para grandes centros urbanos. Parte do material planejado para a produção do filme não chegou ao município de Tucuruí (PA), que fica a 10 horas da capital Belém. “Os equipamentos que tínhamos à nossa disposição foram muito reduzidos. Fizemos o filme com muito pouco”, revela a diretora.

Transamazonia, de Pia Marais — Foto: divulgação
Transamazonia, de Pia Marais — Foto: divulgação

O produtor brasileiro Camilo Cavalcante conta que rodar um filme como Transamazônia traz desafios que são próprios daquele território e não aconteceriam se a produção se desse em São Paulo ou no Rio de Janeiro. “Precisamos nos amparar na criatividade das pessoas que estão disponíveis para criar junto conosco, que entendem os limites do que temos e estão dispostas a fazer o seu melhor”, disse.

'Onde é o meu lugar?'

Filha de uma sueca e de um sul-africano, a diretora nasceu em Joanesburgo e também morou na Suécia e na Espanha. Em sua carreira acadêmica, estudou em Londres, Amsterdã e Düsseldorf, antes de conseguir uma vaga na Academia Alemã de Cinema e Televisão de Berlim (DFFB).

Pia Marais, diretora de Transamazonia
Pia Marais, diretora de Transamazonia

Sua trajetória multicultural informa muitos dos elementos de seu cinema, que tratam muitas vezes de temas como marginalização, autodescobertas e busca por sua própria identidade. Pia Marais conta que se sente um pouco sem lar e que Transamazônia, no final das contas, é um longa filmado no Brasil sobre pessoas que são estrangeiras aqui, como ela. 

“Acho que uma coisa que persiste em todos os meus filmes é a pergunta: onde é o meu lugar? É um tema universal e isso é um alívio, porque é muito solitário se sentir assim. Então é algo que eu exploro”, diz a cineasta, antes de completar, projetando seu futuro no cinema: “Agora gostaria de fazer um filme diferente”.

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