Publicado em 04/11/2018

por Mariana Souza

No dicionário, a memória é descrita como a preservação de ideias e imagens pelo imaginário. O imaginário reencena o real. Seja para nos manter atentos, seja para criar modos de lidar com o que assombra. Durante a sessão da Première Brasil do Festival do Rio que contou com a exibição dos filmes À Tona e Deslembro, o espectador depara-se com esses dois espectros da memória.

No curta À tona, de Daniella Cronenberger, uma mulher revisita seu passado. Sozinha – sempre sozinha – a personagem relata episódios de abuso físico e mental sofridos por ela e outras mulheres de sua família.

A forma fragmentada do filme estabelece diálogo direto com o processo de lembrar. A mulher corre. O correr é uma fuga literal e simbólica. A mente cria mecanismos de sobrevivência. O corpo realiza o desejo de fuga nascido no imaginário. A última cartada na luta para manter-se vivo. E a voz da protagonista ecoa solitária pela sala do cinema.

Já no longa Deslembro, de Flávia Castro, ninguém está só. Família cheia, muitas vozes. A história da família exilada na Europa durante a ditadura é guardada com um sentimento chamado no filme de “memória afetiva”. A clássica história sobre o período ditatorial é contada da forma usual. Nada de novo surge na narrativa. O mesmo tropicalismo, os mesmos dramas, as mesmas saídas. E os mesmos afetos.

É dissonante o impacto da memória na reunião desses dois filmes. Da possibilidade de acolher as lembranças à possibilidade de diálogo, muito diversa nas duas histórias. Alguém percebe isso?

O país tem passado por momentos de crise – há mais de quinhentos anos – e manter viva a lembrança do que passa o povo brasileiro é de extrema importância. A democracia representativa está ameaçada, mas as micropolíticas estiveram desde sempre. “Foda-se a luta de classes”, grita a menina burguesa em Deslembro. Ela pode ser ouvida, possui interlocutor. A mulher negra em À tona segue sozinha em busca de alguém que entenda sua luta.

Saí da sessão com um sentimento solitário, enquanto ouvia os espectadores do cinema na Gávea cantarolando seu velho tropicalismo. Em tempos de crise é sempre bom lembrar. Do que as pessoas se lembram?




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