Publicado em 08/10/2017

Texto de Francisco Noronha

Num tempo em que os conceitos de ficção e documentário são permanente e deliberadamente con-fundidos no cinema contemporâneo, o filme de Eduardo Ades e Marcus Fernando assume-se como um documentário no sentido mais tradicional do termo: o de contar uma história.

E fá-lo sabendo manter o interesse do espectador, ao que ajuda a utilização intra-diegética da banda-sonora e, sobretudo, o material de footage reunido, alternando excertos de filmes (Nosferatu no Brasil, 1970, de Ivan Cardoso, e Terror da Vermelha, 1972, realizado pelo próprio) com escritos, fotografias (o punctum barthesiano impedindo-as de cair na banalidade) e entrevistas no presente. Contudo, em relação a estas, é altamente questionável a opção visual pela utilização do grão e da distorção cromática, o que as situa algures entre uma nostalgia pueril, forçada, e um kitsch grosseiro.

O título do filme carrega a sombra que nunca deixou de estar presente na vida de Torquato: o medo e desejo da finitude, a morte. Paradigmaticamente, o filme inicia-se pelo fim: o suicídio de Torquato (no mesmo dia do seu aniversário, em nova simbólica sobreposição entre origem e destino), que dá o mote para a dimensão espectral sempre-presente. Dessa forma, induzindo o espectador a interrogar-se, na sequência de um verso que se lhe ouvira instantes antes, se Torquato terá sentido, em algum momento, que estava a “trair” a sua poesia.

Se, formalmente, enquanto documentário convencional, o filme tem a virtude, como já referido, de saber contar uma história, não deixa, porém, de estar preso a uma excessiva linearidade (contrastante com o carácter absolutamente desalinhado do seu protagonista). O problema aí não é – insista-se – narrativo, mas, sim, de acuidade. Apenas dois exemplos. O primeiro: por que Torquato, inicialmente um forte opositor da vaga tropicalista, acaba por abraçá-la? O segundo exemplo, porém, é ainda mais problemático, e acaba mesmo por diminuir o potencial do objecto: num filme em que o tema da Morte está tão presente, é como se esta o consumisse, impedindo-o de (sobre)viver para a posteridade. E isso porque em nenhum momento os cineastas procuram colocar a obra de Torquato em diálogo com o presente ou, pelo menos, com a cultura brasileira nos tempos que se seguiram ao seu desaparecimento, abdicando de oferecer uma real noção do seu legado. Neste sentido, é como se o próprio filme “morresse”, se encapsulasse, se encerrasse a si e em si mesmo. 

Ainda assim, a grande valia talvez seja uma que deixaria Torquato Neto feliz: a de mostrar como, de facto, a poesia está liberta da literatura, de como ela se revela em toda a sua expressão, da mais nobre à mais comezinha, da mais elaborada à mais instintiva ou primitiva. De como ela, poesia, se alimenta insaciavelmente, qual Nosferatu, das coisas mais simples e mais complexas do quotidiano. A poesia toda que há na vida como a que há na… morte, a mort au travail que as fotografias do seu rosto evocam. 




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