O Silêncio das Ostras: longa ilustra devastação causada pela mineração em tragédias cotidianas Filmes de Marcos Pimentel acompanha a vida de Kaylane, uma menina que passa a mulher em uma vida sequestrada pela indústria mineradora. Mais do que as consequências dos crimes ambientais, longa mostra o impacto nas comunidades de mineradores décadas antes do rompimento das barragens
O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel
Por Laís MalekMuitas imagens já foram produzidas sobre os desastres ambientais de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, em 2015 e 2019. Em O Silêncio das Ostras, o diretor Marcos Pimentel leva ao Festival do Rio 2024 uma abordagem diferente, contando a história da região décadas antes da devastação causada pela lama. Enquanto a discussão tende a girar em torno do rompimento das barragens em diante, o filme revela o poder de destruição das mineradoras de maneira constante e violenta. A exibição, parte da mostra competitiva da Première Brasil, ocorreu na tarde da terça-feira (8) no Cine Odeon - CCLSR, em sessão seguida de bate-papo do elenco e equipe com o público.A narrativa é conduzida por Kaylane, a protagonista do longa. Os três atos do filme são estruturados ao redor de diferentes etapas da vida da personagem. Na infância, ela é interpretada por Lavínia Castelari, e na fase adulta, na juventude e depois já como uma mulher mais velha, ela é vivida por Bárbara Colen. O longa faz um trabalho importante de caracterização de Kaylane: ela é a caçula e a única menina da família formada por seus quatro irmãos, a mãe e o pai, que vive em estado debilitado e precisa ser cuidado para exercer todas as suas funções.
O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel
Cleude (Sinara Telles), a mãe da família, é quem carrega a carga emocional de uma vida inteira arrasada pelas mineradoras. Viúva com um marido vivo, ela vê os filhos mais velhos seguirem o caminho do pai, já que essa é a única fonte de renda da região. Sobrecarregada, ela canta para espantar os males, e revela à filha seu sonho: sair do vilarejo e ganhar a vida como cantora à beira do mar. Na fantasia, ela usa um colar de pérolas, e explica para Kaylane que as pedras vêm das ostras, em uma lição que acompanha as duas ao longo da vida.
Sinara analisa a personagem. “Ela é complexa e cheia de contradições. Não cabe a mim julgar as decisões dela, uma vez que ela teve uma vida muito dura. A palavra ‘ostra’ foi muito forte no processo, e precisamos pensar nessas mulheres concha, nessa carcaça e no que a gente carrega, no que está dentro. Isso foi fundamental para construir a forma que ela vê o mundo, essa vontade de brilhar e ao mesmo tempo uma carga que a impede”, conta a atriz.
A primeira perda que Kaylane sofre é a da mãe, que desaparece de um dia para o outro. A menina encontra companhia em um cachorro, que batiza de Ostra, em uma espécie de homenagem póstuma à mãe. Ela passa a explorar mais a interação com outros elementos ao seu redor: os insetos que passa a colecionar, o vento que bate nas minas que ocupam de maneira opressora toda a paisagem, o rio tóxico no qual ela se arrisca e termina cheia de feridas.
Debate de equipe e elenco de O Silêncio das Ostras com o público no Cine Odeon — Foto: Kayane Dias
“A Kaylane me trouxe muitas lições e aprendizados sobre a natureza e me fez entender o que é a mineração. Me trouxe uma mensagem importante, porque eu me coloquei no lugar dela em vários pontos. E a gente até se parece, ela é uma personagem um pouco estranha e eu também sou estranha. Foi um papel muito importante para a minha carreira”, conta Lavínia.
Mais velha, Kaylane precisa lidar com novas questões. A morte do pai, a partida de três irmãos que vão trabalhar em outras minas e nunca mais dão notícias, o medo de perder a casa em que mora, a ameaça de violência sexual e a perda do último irmão que assassina o homem que queria agredi-la. Sozinha, ela se volta mais uma vez aos seus pequenos confortos: os passeios pelas minas, o artesanato, a coleção de insetos que se transforma em arte e ocupa uma parede inteira da casa.
O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel
“É um filme extremamente violento, por tudo que acontece com essa personagem, mas com a Kaylane eu estava sempre blindada. Me conectava ao vento, com a luz do sol, os bichinhos, então tive que desenvolver um outro olhar. A gente estava lá, mas com outras conexões acontecendo. Os animais foram impressionantes, eles apareciam, se comunicavam. É muito linda essa potência de encontros com outras com outras coisas e lugares”, conta Bárbara Colen.
Dois elementos presentes no filme ajudam a construir a narrativa sem precisar de diálogos entre os personagens. De cara, a fotografia chama atenção, tanto pelos planos abertos que permitem ao público ver toda a área dominada pela mineração, quanto pelos planos detalhe que revelam as minúcias dos objetos. Já a trilha sonora, principalmente através da música Eva, da Banda Eva, dá o tom de momentos importantes para a trama.
O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel
“É uma música de Carnaval, pra cima, que deixa todo mundo feliz, mas a letra é apocalíptica, fala de destruição, e é isso que a mineração está fazendo. Resolvi trabalhar ela com diferentes intenções dramáticas. A gente conseguiu desconstruir uma música que normalmente a gente só pensa em um astral super legal e vê como ela pode ser ou tímida, ou drástica, ou um meio-termo, ou com um astral legal. A gente foi testando e usou no roteiro para ajudar a progressão da história”, explica o diretor.
No terceiro ato, a lama destrói a cidade e a casa de Kaylane, e ela começa uma peregrinação em busca de um novo rumo. Para representar a tragédia, o filme utiliza imagens de arquivo da destruição causada pela lama em Mariana e Brumadinho. Marcos Pimentel fala sobre a importância da narrativa e os problemas que encontrou para fazer o filme.
O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel
“Eu sou de Juiz de Fora, ando muito por Minas Gerais e foi uma decisão essencial fazer cinema sobre o meu estado. Construí essa história com fragmentos de vidas que encontrei nas minhas andanças, e tem muitas histórias pessoais. Eu fui para a ficção por um motivo muito simples. Queria falar de mineração, e nenhuma mineradora me deixa entrar para mostrar como eles fodem a vida das pessoas. O filme nasce da impossibilidade de fazer um filme sobre mineração em Minas Gerais e toda implicação que isso pode ter”, afirma.
Ele também comenta sobre a decisão de, no final do longa, citar as empresas Vale e Samarco como as responsáveis pela tragédia. Na cartela final, o público é lembrado que elas não foram responsabilizadas pelos crimes ambientais. “A gente convive com elas constantemente, e faz parte elas escutarem o que está acontecendo. E elas tem abertura para isso, porque quando você lança luz sobre um problema, você multiplica, então tem uma relação aí. Para mim, é muito importante dar nome ao que está acontecendo. Claro que não é só a Vale, toda a mineração está corroendo, mas ela tem uma participação maior e estava envolvida nos dois crimes, então para mim foi bem natural”, conclui Pimentel.
O Silêncio das Ostras, de Marcos Pimentel
Leia também:- Baby: juventude, sobrevivência e relacionamentos conflituosos constroem mapa afetivo de São Paulo
- Quando Vira a Esquina: documentário enfrenta tabus sobre prostituição com vozes e rostos da Vila Mimosa
- Avenida Beira-Mar: Niterói bucólica abre espaço para brincadeira de criança e questões adultas
- Betânia: filme de Marcelo Botta é um tributo ao Maranhão e à força de suas mulheres
- Incondicional – O Mito da Maternidade: documentário descarta cartilha de comportamentos esperados para mães
Voltar