O Mensageiro: gestos de humanidade nos porões da ditadura Lucia Murat apresentou filme sobre os anos de chumbo em uma sessão com debates da Première Brasil no Cine Odeon.
Lucia Murat propõe um olhar para o passado para abordar questões contemporâneas em O Mensageiro, filme que revisita os violentos anos de chumbo da ditadura militar em uma trama que usa elementos da própria biografia da cineasta, que integrou a resistência ao regime e foi presa e torturada.
O longa-metragem foi exibido no Cine Odeon na tarde desta segunda-feira (9/10), com ocupação quase total da sala, incluindo a presença de muitos estudantes de escolas públicas. “O que me levou a fazer esse filme foi a questão da polarização, a necessidade buscar diálogo. A última eleição reafirma isso”, comentou a cineasta durante um debate com o público mediado pelo crítico Luiz Carlos Merten.
O Mensageiro “retrata momentos de humanidade em meio ao horror”, avalia Murat. A trama apresenta a prisioneira política Vera, vivida por Valentina Herszage, que enfrenta a tortura nos porões da ditadura no Rio de Janeiro. Armando, interpretado por Shi Menegat, é um jovem soldado recém-chegado do Sul do país que acompanha a barbárie nas celas dos presos políticos que tenta formar um vínculo com Vera. O cabo passa então a levar mensagens dela para a família da detenta e desenvolve uma amizade com Maria (Georgette Fadel), uma mulher conservadora e católica que passa a buscar maneiras de lutar pela liberdade da filha em um momento de tamanha repressão.
“Realmente, quando eu estava no DOI-CODI um soldado levou uma mensagem para a minha mãe. Três anos depois, eu soube que minha mãe tinha sido madrinha do casamento dele”, recorda Murat.
Durante o debate, Floriano Peixoto, que interpreta o pai de Vera, dividiu com a plateia que ele e Murat são primos e moravam no mesmo prédio na infância. O ator se emocionou ao recordar de quando notou que a prima havia desaparecido.
Valentina Herszage contou ter vontade de trabalhar com Lucia Murat desde que assistiu à Praça Paris, trabalho que rendeu à cineasta o Troféu Redentor de melhor direção no Festival do Rio em 2017, prêmio que ela também ganhou por Quase Dois Irmãos (2004), outro filme sobre o período da ditadura militar. A atriz recordou dos ensaios e da preparação do elenco durante a pandemia, que se deu ao longo de seis meses em videoconferências online.
Para imergir na personagem, Valentina aplicou uma técnica que a preparadora de elenco Amanda Gabriel chama de “roteiro pirata”. A atividade envolve partir do roteiro oficial do filme para imaginar e criar um olhar expandido das personagens. A atriz conta que isso a ajudou a compor a Vera nas cenas em que ela está na cela, retratando momentos de solidão, dor e falta de perspectivas. Assistir a filmes como Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil (2020), de Carol Benjamim, Torre das Donzelas (2018), de Susanna Lira, ambos sobre presos políticos da ditadura militar no Brasil, também fez parte da pesquisa de Valentina.
Shi Menegat realizou um exercício semelhante para se aproximar de seu personagem, escrevendo um diário no qual busca se conectar e dialogar com Armando. Adotar a postura de um soldado em cena também marcou o processo de filmagem de O Mensageiro para Menegat: “Eu fiz meu próprio laboratório em casa tentando entender esse corpo contido, esse corpo que quase não tem subjetividade, então o olhar é muito importante. O rosto é o que sobra no meio dessa farda que oprime tanto.”
Luiz Carlos Merten, mediador do debate, considera que o diálogo proposto por O Mensageiro não uma mera conciliação entre visões díspares, mas uma coisa mais complexa. “Esse filme tem camadas. Até os personagens bonzinhos têm seu lado mais obscuro”, comentou.
Tal complexidade foi exaltada por Beatriz Barros, que interpreta Marialva, mulher que desperta o interesse amoroso de Armando. “Lucia faz isso de prismar os personagens no roteiro com uma maestria. Ninguém é chapado. Não tem uma verdade unilateral ali. Os personagens têm conflitos para além do bem e do mal.”
Texto: João Vitor Figueira
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