Publicado em 13/10/2024

O Deserto de Akin, de Bernard Lessa

Por Laís Malek

Em O Deserto de Akin, a realidade dos profissionais cubanos que participaram do programa Mais Médicos, ajuda a ilustrar a própria realidade das pequenas cidades do país. O filme de Bernard Lessa provoca uma imersão em um contexto social que não é conhecido pelos moradores das grandes capitais do Brasil. Na tarde de sábado (12), o longa foi exibido no Estação Net Botafogo e integra a competição oficial da Première Brasil do Festival do Rio 2024.

O filme se passa em 2018 e tem como plano de fundo a iminência da eleição presidencial, que terminou com Jair Bolsonaro vencendo, e a incerteza sobre o futuro do programa Mais Médicos. A trama acompanha Akin, um médico cubano que foi selecionado para trabalhar no Espírito Santo. A cidade, fictícia, incorpora ambientes de diferentes lugares do estado: os forros as dunas de Itaúnas, onde ele conhece e passa tempo com Érica, sua namorada; a reserva indígena de Aracruz, onde ele conhece uma criança indígena com um problema na visão; um posto de saúde no qual realiza atendimentos, na Serra; e praias e cachoeiras de Guarapari, em que ele aprofunda sua conexão com Sérgio. 

Mas o primeiro laço que Akin estabelece no Brasil, antes mesmo de conhecer Erica, é com uma cobra que, segundo ele, “o visita de tempos em tempos”. Nela, o médico enxerga uma companheira no sentimento de ser um estrangeiro no ambiente. No debate após a sessão, o diretor Bernard Lessa falou sobre esse sentimento. “O sentimento de ser estrangeiro é um sentimento que me pertence. Quando a gente observa com uma câmera, a gente sempre tem que ser um pouco estrangeiro com a vida para olhar para ela. Tem uma música do Sérgio Sampaio que diz ‘onde quer que eu esteja, eu não estou’. A gente é um pouco estrangeiro na nossa vida, vai e volta, a linguagem provoca isso na gente”, analisa o diretor caixaba. 

O Deserto de Akin, de Bernard LessaO Deserto de Akin, de Bernard Lessa

No horizonte dos personagens, estão as dunas de Itaúnas. Ao longo do filme, as enormes montanhas de areia cumprem funções dramáticas diferentes, podendo representar perigo ou conforto, dependendo do momento e do personagem que interage com ela. A paisagem não foi escolhida por acaso: Akin é filho de um Angolano, nascido em um deserto, e se sente acolhido pela areia que encontra ao seu redor. A diretora de fotografia Heloisa Machado explica as escolhas estéticas e seus significados. 

“Esse deserto que chega para o Akin vai chegando para a gente também. Filmamos alguns finais diferentes para o filme, e foi uma escolha acertada. Ele decide ficar, e isso dá um conforto para quem está acompanhando o personagem. Mas aquela cena dos três deitando juntos,  tem areia na cama, então não está tudo bacana, vai vir coisa ainda por aí. Tem uma força que está vindo, que é o deserto. É aquela coisa da entropia, vem pra bagunça tudo e a gente não espera, mas a vida é isso”, pontua. 

Outra grande expressão cultural local é a música, que aparece através do forró. Na trama, a música funciona como um ponto de conexão entre os personagens. Primeiro, é no forró que Akin e Érica se conhecem.  Em outro momento, Érica e Sérgio dançam juntos na casa dela enquanto Akin observa, mas ela precisa sair e o pernambucano chama o cubano para dançar. É nesse momento que surge um clima entre os dois, que depois decidem aprofundar a relação. Na tela, a câmera acompanha o balanço dos personagens. 

O Deserto de Akin, de Bernard LessaO Deserto de Akin, de Bernard Lessa

“A gente já pensava desde o início em filmar com a câmera na mão. Nessas cenas, a gente queria que a câmera dançasse junto com os personagens. Fui para as aulas de forró com a preparadora de elenco, e tinha uma coisa de ir seguindo as mãos, e quando trocavam de condição pensar em onde dava vontade de olhar, de dançar e de pegar o ritmo junto com eles. Isso ajudou a própria câmera a se entender com o corpo dos atores para todo o resto do filme”, conta Heloísa. 

No final do filme, quando o médico decide ficar no país mesmo após o desmanche do programa Mais Médicos, vemos que a cobra trocou de pele, espelhando a metamorfose de Akin. Quem encontra a pele morta é Sergio, que hesita, mas por fim decide deitar na cama junto com o cubano e Erica, que dormiam juntos. A atriz que interpreta Sergio, Guga Patriota, analisa a relação dos três personagens. 

“Houve muita confiança nessa alquimia em ocupar a história com os nossos corpos. Estávamos os três em trânsito - eu de Recife, Rey veio de Cuba e a Ana [Flávia Calvalcanti, que interpreta Érica] mora em São Paulo. Parte da atuação conversa com essa sensação de ser estrangeiro e coloca esse corpo à disposição para fazer essa dança. No fim, a relação dos três passa por não ter medo do toque, do corpo, e de conduzir um ao outro. E isso tem a ver com cuidado, que está presente no filme o tempo inteiro”, elabora. 

O Deserto de Akin, de Bernard LessaO Deserto de Akin, de Bernard Lessa

Esse cuidado levantado por Guga também estava presente fora das câmeras. Reynier Morales, que interpreta Akin, falou de maneira emocionada sobre sua chegada ao projeto e o que significa interpretar um papel como o do médico para a sua carreira.

 “Foi uma coisa orgânica. Como ator, tem momentos que você precisa fazer uma cena dramática e não está com vontade, precisa se concentrar muito para que saia a emoção. Mas isso não aconteceu aqui, sempre consegui evocar uma emoção dentro de mim. Achei muito especial, necessário e importante, porque geralmente as propostas que recebo são de coisas mais violentas. Dificilmente chega às minhas mãos um roteiro que fala de bondade, um roteiro generoso, sensível, tranquilo e cuidadoso. Foi mágico e emocionante”, relata. 

Equipe e elenco de O Deserto de Akin, de Bernard Lessa, em debate no Festival do Rio 2024 — Foto: Davi Campana
Equipe e elenco de O Deserto de Akin, de Bernard Lessa, em debate no Festival do Rio 2024 — Foto: Davi Campana

O diretor conta que Reynier trouxe diversas referências musicais de Cuba, o que ajudou a compor a musicalidade do longa. Todas as músicas da trilha sonora — excetuando os forrós que tocam nas caixas de som durante o filme — são originais, e as duas que têm letra são cantadas pelo ator principal. Lessa dá mais detalhes sobre a influência da música para a trama.

“Falar desse triângulo Cuba, Angola e Espírito Santo é uma riqueza musical incrível. A gente fala de forró, no Espírito Santo, e comecei a pesquisar. A gente tinha uma gama de ritmos incríveis para começar a trabalhar. Já comecei a pesquisa desde então, Benny Moré, muito bolero, me aproximei mais ainda da música cubana. Na hora da montagem, vem a música que vai ser usada. Mas a bagagem já vem quando você está escrevendo o roteiro, porque a música te inspira até para criar e desenvolver melhor os personagens”, revela.

Leia também:

Siga o Festival do Rio nas redes sociais:



Voltar