Publicado em 12/10/2023

A potência libertária da arte frente à opressão e a exaltação do legado de José Celso Martinez Corrêa, maior nome da dramaturgia brasileira marcaram a sessão seguida de debate de O Coro do Te-ato no Cine Odeon nesta quinta-feira (12/10).

O filme de Stella Oswaldo Cruz Penido, que compete na Première Brasil, resgata a história de uma caravana libertária gestada no Teatro Oficina no final da década de 1970. Após voltar do exílio durante os anos de abertura da ditadura militar, Zé Celso formou um coro, inspirado no teatro grego, que encenava o pulsante “Ensaio Geral do Carnaval do Povo” nas ruas. De natureza itinerante, o espetáculo afrontava a moral vigente ao unir teatro, música, dança e religiosidade afro-brasileira.

“Eu não mudei a cabeça, mudei meu eixo”, comentou Stella, que fez parte do coro e começou a produzir o documentário ainda em 2008. “Essa vivência com o corpo, de estar com o corpo na rua e estar com o corpo para falar mudou meu eixo. Comecei a enxergar o Brasil, enxergar as pessoas. Eu sou muito grata ao Zé.”

Havia um grande acervo filmado em super 8 das andanças do “Ensaio Geral do Carnaval do Povo” pelo Brasil, registrando espetáculos, viagens e a rotina coletiva do grupo no cotidiano. A diretora conta que inicialmente pensou em montar o documentário apenas com essas imagens de arquivo, mas aos poucos incluiu outros acervos que registram a atividade do coro, como fotografias, reportagens de jornais que registravam como o grupo era alvo da censura e até mesmo de agressões da polícia e cadernos com diários, poemas e manifestos. 

Outro dispositivo usado para mostrar como o grupo era um corpo coletivo foram as entrevistas. “Ela sempre trabalha com grupos. Não há entrevistas individuais. Há sempre pessoas juntas sendo afetadas umas pelas outras”, comentou Martinha Sattamini, que fez parte do grupo e esteve presente no debate.

Por conta da repressão oficial da ditadura, o coro chegou a ser proibido de atuar por seis meses. Além disso, parte da esquerda direcionava críticas ao efervescente grupo, por vezes considerado provocativo demais pelo uso da nudez e por ressignificar símbolos como a bandeira do Brasil.

“O interessante do filme da Stella, uma obra de perseverança e inspiração, é que o filme traz uma atualidade total”, avaliou Martinha. “Continuamos com a luta contra a violência policial, continuamos em um país racista, continuamos com o preconceito contra o indígena. O filme mostra que há 40 anos a gente já lutava por tudo isso. A gente tem que lutar mais.”

A emoção por revistar o passado marcou o debate, que contou com a presença de outras pessoas que tiveram suas vidas marcadas por suas passagens pelo efervescente coletivo. “Nos assistir após 40 anos faz com que muitos outros filmes passem na cabeça”, comentou Ademar Olímpio Papaléguas, que lembrou de todos os colegas vistos na tela que já faleceram. Ras Adauto afirmou que até hoje tenta assimilar o que significou a experiência que teve com o grupo. Vik Birkbeck ressaltou que a resposta conservadora à proposta do coletivo “foi brutal” e que é preciso “continuar a luta”.

“Parece que foi uma vida inteira porque aquilo marcou a gente para sempre e nunca mais fomos os mesmos, mas só durou um ano e meio, dois anos”, recorda Martinha. “Mas foi de uma intensidade absoluta. Eu abri mão da minha carreira de teatro tradicional para viver uma coisa que era muito mais profunda, essencial e uterina, eu diria. Era uma força muito grande. Era muito diferente até de outros grupos da mesma época que viviam coletivamente e fazia trabalhos coletivos.”

Morto aos 86 anos no último mês de julho após um incêndio atingir o apartamento em que o dramaturgo viva com seu marido, Zé Celso foi lembrado afetuosamente por todos os que tomaram a palavra durante o debate. De acordo com Stella Oswaldo Cruz Penido, o ícone do teatro brasileiro chegou a assistir uma versão do filme. Na conversa, Ademar aproveitou para falar sobre a persistência do legado do dramaturgo.

“O Zé pegou fogo. Literalmente. Igual tinha acontecido em 1967, quando o Teatro Oficina pega fogo e fica um ano parado. Ele volta com ‘O Rei da Vela’ e revoluciona o teatro brasileiro, revoluciona o pensar sobre a cultura brasileira. É um marco do tropicalismo. Eu imagino que o Zé pegou fogo, mas, ao mesmo tempo, ele se multiplicou em milhares, numa coisa quântica, e ele se espalhou. De uma forma mágica, acho que o Zé também está nos novos movimentos, em todas as novas ações da arte. O filme estimula que essa propagação quântica se amplie.”

Texto: João Vitor Figueira
Foto: Ian Melo



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