Publicado em 06/10/2024


Maré Alta, de Marco Calvani

Por Laís Malek

Em uma sessão lotada no Estação NET Botafogo na noite deste sábado (5), a estreia nacional de Maré Alta (High Tide, 2024) emocionou o público do Festival do Rio 2024, evento que dura até 13 de outubro. O longa, dirigido pelo italiano Marco Calvani, acompanha o dilema e os conflitos de Lourenço (Marco Pigossi), um brasileiro que está passando uma temporada nos EUA assombrada pela chegada do prazo do visto de turista. 

A história se passa em Provincetown, uma pequena cidade litorânea no estado de Massachusetts. Mais do que ambientar a trama, o local é também funciona como um personagem, com seus próprios contexto histórico e conflitos. No pano de fundo, o peso da crise causada pela epidemia de HIV/Aids décadas antes ainda se faz presente — especialmente no personagem Scott (Bill Irwin), o dono da casa em que Lourenço mora e que não se cansa de contar histórias sobre o namorado que perdeu para a doença. 

“Provincetown é um lugar muito importante pra mim e é muito interessante de conhecer. É uma meca queer e que tem uma história não só artística, mas como social muito forte nos anos 1980 e 1990, quando teve a epidemia da Aids. Muitos homens homossexuais iam para lá e criou-se uma comunidade onde eles cuidavam uns dos outros”, analisa Pigossi. 


Maré Alta, de Marco Calvani

Na trama, Lourenço deixa o país para acompanhar o namorado, Joe, mas o relacionamento não engata e o protagonista se vê sozinho no país estrangeiro. Ainda que conte com a companhia de Scott, ele passa boa parte do tempo realizando trabalhos braçais — no início, de limpeza e depois de pintura de uma casa —, já que não pode ter um emprego formal com um visto de turista. O motivo para estar longe de casa, no entanto, é mais profundo: nascido e criado em Itu, no interior de São Paulo, a forte presença religiosa que o rodeou durante toda sua vida não permite que ele se expresse como gostaria. Para Pigossi, essa sensação de não-pertencimento não foi uma novidade. 

“Sempre que a gente faz um personagem, tem muita coisa nossa, de um lugar de empatia, de imaginar o que o personagem está sentindo. O Lourenço está se descobrindo como pessoa, como homem, como um corpo gay. E está fugindo de uma de uma família conservadora, tentando se encontrar. São coisas que eu passei, e como imigrante também, nesse lugar de recomeço. É uma redescoberta da sua personalidade. Não é um filme biográfico, mas é um filme que toca em questões muito importantes para mim, muito próximas", conta o ator. 


Maré Alta, de Marco Calvani

O "filho"

A maioria dos diálogos no filme são em inglês — exceto nas ligações de Lourenço com a mãe e quando ele ensina algumas palavras em seu idioma para Maurice (James Bland) —, mas Pigossi conta que não foi um fator de dificuldade. Ele já participou de outras produções estrangeiras, e, nesse caso, como o personagem é brasileiro, não precisou esconder o sotaque. Pelo contrário: em muitas das cenas, quando o personagem conhece uma nova pessoa, a primeira coisa que percebem é que ele não é estadunidense. Para Pigossi, essas características contribuem para deixar o longa com uma “alma brasileira”. Ele conta também que considera a obra seu filho com Marco Calvani, diretor do longa e seu marido. 

“Foi um projeto que a gente desenvolveu juntos, é o primeiro longa-metragem dele e o meu primeiro longa-metragem como ator nos Estados Unidos. Não é fácil abrir um espaço nos Estados Unidos, em Hollywood, em uma indústria que ainda está meio fechada para novas culturas e diferentes ideias. É um filme muito íntimo, muito pessoal, que foca muito mais na parte cultural do que comercial. Foi um grande desafio, mas uma grande alegria desenvolver esse projeto e colocar ele no mundo juntos”, analisa. 

Calvani também teve uma relação muito pessoal com o trabalho. Ele conta que conheceu Pigossi enquanto estava escrevendo e logo já o imaginava como o protagonista. Ao longo do filme, Lourenço revela que, mesmo a milhares de quilômetros de casa, ainda não conseguiu se livrar do medo de estar fazendo algo errado e ir para o inferno por causa de sua sexualidade. Enquanto mergulhava essa história, o diretor acabou sendo confrontado por seus próprios conflitos internos. 

“Acho que a chave para fazer um bom filme é fazer um filme que você gostaria de assistir. E esse especialmente, como é um filme LGBTQIA+, quando eu estava fazendo esse filme, escrevendo, produzindo e agora assistindo com todos vocês, ele curou a minha homofobia internalizada, que eu nem sabia que eu tinha. Nós não somos encorajados a ser quem somos, e o poder do cinema, do cinema queer, é mostrar isso. Quem eu estava crescendo não tinha nem menção de pessoas como eu, tive que esperar até os 19 anos para ver alguém. Nesse momento eu já estava atuando, e atuava estranho, porque não tinha referências. O que eu quero é que as próximas gerações, seja meus sobrinhos e sobrinhas, meus filhos, meus amigos não tenham medo de ser quem são. Eu passei a vida toda achando que era um homem gay livre, mas eu não era, e precisei de uma vida inteira e desse filme para descobrir que não”, reflete o diretor.

Maré Alta, de Marco Calvani
Maré Alta, de Marco Calvani

Sentimento universal

Mesmo com o filme girando ao redor de um personagem gay, Calvani garante que o tema é universal e todos que assistirem podem se identificar, em alguma medida, com a história. 

“Assistir um filme, assim como fazer, é uma experiência muito pessoal. Espero que as pessoas vão de coração aberto. É um filme muito delicado e vulnerável, mas é um filme essencialmente sobre amor. Amor pelo lugar que você está, amor por quem você já foi e por quem você pode ser, amaor pelo próximo, amor pela comunidade de pessoas ao seu redor. O máximo que eu posso esperar é que as pessoas cheguem a conclusão de que somos um só. Existimos como um todo e não individualmente. É um filme muito íntimo, que carrega uma mensagem política. Espero que o público enxergue isso e possamos apreciar tudo isso juntos”, diz Calvani. 

Maré Alta, de Marco Calvani
Maré Alta, de Marco Calvani

Recepção no Brasil

Na trama, Lourenço navega situações constrangedoras por ser um imigrante brasileiro nos EUA. Em um determinado momento, ele ouve que “não parece brasileiro". Em outra situação, insistem que ele é parecido com um ator mexicano. A pior delas ocorre quando um advogado, que deveria estar ajudando a renovar seu visto, o objetifica e minimiza sua formação como contador. Definido pelo diretor com um filme “essencialmente brasileiro”, a escolha de fazer a estreia internacional no Festival do Rio foi uma decisão desde o início do projeto. 

“Era uma condição para mim quando eu comecei a produzir, que a estreia internacional seria no Festival do Rio. Foi aqui que me vi na tela grande pela primeira vez”, conta Pigossi. Ele faz questão de destacar a mensagem principal do filme. “Vale lembrar que estamos no Brasil, o país que mais mata pessoas LGQBTQIA+ no mundo. Esse filme é uma carta de amor a todos os Lourenços que tiveram que sair do seu país e buscar um lugar seguro porque não puderam ser amados simplesmente por serem quem são”.

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