Publicado em 28/09/2024

Anita Rocha da Silveira no Festival do Rio 2021 — Foto: Davi Campana

Por Rodrigo Torres

Nota do editor: esta matéria faz parte da série especial #MeuRedentor, que celebra personalidades do cinema brasileiro que estão marcadas na história do Festival do Rio com trabalhos que se destacaram na competição da Première Brasil. Novas páginas desta história serão escritas na cerimônia de encerramento da edição de 2024 do evento, que acontece entre os dias 3 e 13 de outubro.

O Festival do Rio é uma grande celebração que reúne todos que respiram cinema. Seja numa gala no Cine Odeon ou no Estação Botafogo, seja numa sessão à tardinha de um filme de estreia daquele cineasta promissor que ninguém conhece (ainda), você pode literalmente esbarrar com uma pessoa de quem você é muito fã por seus serviços prestados à sétima arte (e tantas outras).

Vencedora três vezes do Troféu Redentor com os filmes Mate-me Por Favor (2015) e Medusa (2021), Anita Rocha da Silveira é, hoje, um desses grandes nomes do cinema brasileiro que você encontra desbravando novas cinematografias durante o Festival do Rio — algo que ela faz desde que estava do outro lado dessa dinâmica, como uma adolescente apaixonada pela sala escura dividindo sessão com seus ídolos.

Anita Rocha da Silveira no Festival do Rio 2015
Anita Rocha da Silveira no Festival do Rio 2015 — Foto: Ciadafoto

As recordações de adolescência

“Eu cresci no Rio de Janeiro, então posso dizer que as minhas memórias se confundem com as do Festival do Rio”, diz Anita, buscando na memória suas primeira recordações no festival. “Não sei ao certo qual a minha primeira lembrança, mas uma das mais marcantes é de 2001, quando assisti Cidade dos Sonhos, de David Lynch, em um (saudoso) Cine Paissandu lotado. Esse se tornou um dos meus filmes favoritos, e acho que a experiência de ainda adolescente estar presente na primeira sessão do filme no Brasil e descobri-lo em uma experiência coletiva tem algo de maravilhoso.”

Anita ainda se lembra de ver “várias pessoas se olhando perplexas no final da sessão, conversando, criando teorias e significados, todos hipnotizados” durante a sessão de Cidade dos Sonhos, que ela considera "uma obra genial”. Esse efeito de choque e catarse é uma das grandes características das sessões do Festival do Rio, e certamente moldou o cinema de Anita Rocha da Silveira.

Afinal, logo em seu longa-metragem de estreia, a cineasta carioca abocanhou o Troféu Redentor de Melhor Direção com uma obra muito bem filmada e com poder de provocar impacto semelhante, de confusão e quebra de expectativa. O sucesso de Mate-me Por Favor é, em grande medida, atribuído à habilidade de Anita em construir uma obra de terror psicológico com clara influência do cinema de David Lynch.

Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira / Twin Peaks, de David Lynch
Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira — Foto: divulgação

As inquietações de Mate-me Por Favor

Assim como Cidade dos Sonhos, Mate-me Por Favor possui uma estética que é ora familiar e realista, ora estilizada e maneirista. A Barra da Tijuca do cinema de Anita tem a mesma atmosfera urbana que vai se tornando gradualmente mais sinistra e onírica que a Los Angeles perturbadora de David Lynch. No meio do filme, para não deixar dúvidas, Anita retrata uma jovem loira debutante igual à icônica Laura Palmer de Twin Peaks (1990). Mas, como a telona denuncia, seu projeto de cinema não é nada emprestado, mas uma manifestação de suas inspirações e seus sentimentos.

“Como roteirista, algo que me motiva é transformar em filme os horrores que presenciamos em nosso dia a dia e em nosso país. Em Mate-me Por Favor, muitas inspirações vieram dos medos, desafios e pulsões de ser uma adolescente em um corpo feminino na cidade do Rio de Janeiro”, conta ela, explicando o processo criativo que lhe rendeu indicações como diretora revelação em vários festivais importantes, como Veneza, SXSW, Munique e IndieLisboa.

Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira / Twin Peaks, de David Lynch
Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira / Twin Peaks, de David Lynch  — Fotos: divulgação

As realizações de Medusa

Paralelamente, Anita já trabalhava em seu segundo longa-metragem — ainda mais bem-sucedido e premiado no Brasil e no mundo. “Medusa é um filme que comecei a escrever em 2015, conseguimos filmar no final de 2019, mas, com a pandemia, qualquer possibilidade de estreia em cinema foi parar em uma espécie de limbo. E estrear em uma sala de cinema era algo que eu não podia abrir mão”, conta ela, revelando o motivo de só ter lançado o filme em 2021 — o que lhe rendeu uma experiência inesquecível.

“Lembro com muita emoção da primeira sessão do filme na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes em 2021. Foi um dos primeiros festivais de cinema presenciais e, por a vacinação no Brasil estar atrasada em comparação com outros países, tivemos que fazer quarentena na França por 10 dias e teste PCR a cada 48 horas. Mesmo assim, foi uma experiência incrível! Sem contar a emoção de poder finalmente voltar a frequentar salas de cinema cheias depois de um ano e meio de isolamento.”

Dito isso, Anita admite: “Nada supera a estreia na sua cidade. Fico arrepiada só de lembrar da emoção e alegria imensa que foi exibir “Medusa” no Festival do Rio de 2021, excepcionalmente em dezembro, e poder celebrar com a equipe e amigos. Os Redentores de Melhor Filme de Ficção, Direção e Atriz Coadjuvante (Lara Tremouroux) foram a cereja do bolo”, ela lembra, bastante feliz com o resultado de seis anos de trabalho.

Anita Rocha da Silveira no Festival do Rio 2021 — Foto: Frederico Arruda
Anita Rocha da Silveira no Festival do Rio 2021 — Foto: Frederico Arruda

Um exercício artístico e político

Anita falou também sobre a elaboração de Medusa como um reflexo dos medos e violências de nossa sociedade: “Um dos pontos de partida foi o exercício de pesquisar e entender o outro: quem é a jovem brasileira de extrema-direita que nasceu em um ambiente ultraconservador? O que a move? Quais são os seus medos? No processo de desenvolvimento do roteiro, um dos temas que vieram à tona foi justamente o “controle” – e consequentemente a perda dele.

Ela continua dizendo que “as personagens femininas precisam controlar tanto seus corpos nesse ambiente religioso e conservador (como devem se portar, como falar, como se vestir e se maquiar, e principalmente a sua sexualidade) que passam a controlar também aquelas à sua volta”. Além de um exercício de gênero e estilo, o cinema de horror de Anita Rocha da Silveira é um exercício político.

“Acredito que o cinema tem um papel fundamental na discussão de temas como controle social, repressão e violência, e no meu caso, especialmente em Medusa, também enquanto um espaço-tempo de catarse. Por isso, gosto de trazer elementos fantásticos, pensar universos alternativos — em que o sonho, o horror, o musical e o humor se misturam — e construir uma estética que transborde a realidade.”


Medusa, de Anita Rocha da Silveira — Foto: divulgação

A influência dos autores

Ao longo da conversa, Anita revelou suas principais influências no cinema — Alfred Hitchock, musicais como Cantando na Chuva (1952) e All That Jazz (1979), autores asiáticos como Wong Kar-wai, Tsai Ming-liang e Hou Hsiao-Hsien e os cineastas de gênero Dario Argento e Rogério Sganzerla — e também na literatura, como “Manuel Puig, Machado de Assis, Julio Cortázar, Carson McCullers, Paul Auster e, mais recentemente, Mariana Enríquez”. Essas obras vão moldando sua visão de mundo, mas é curioso perceber como, ao falar do processo roteirização de Mate-me Por Favor e Medusa, ela revela a importância de expressar uma visão de mundo que é tão sua, tão própria. Disso é feito uma grande autora.

Então, por fim, Anita Rocha da Silveira faz uma reflexão mais ampla sobre a importância do Festival do Rio em sua construção como apreciadora de arte, desde bem jovem, e como um espaço de divulgação da sua própria arte — essa sublimação de suas percepções, do seu ser pensante — já adulta, como autora (respeitada) de cinema de terror.

Anita Rocha da Silveira e equipe do filme Medusa no Festival do Rio 2021
Anita Rocha da Silveira e equipe do filme Medusa no Festival do Rio 2021 — Foto: Frederico Arruda

A importância do festival

“O Festival do Rio teve um papel fundamental na minha formação e na manutenção da minha cinefilia. Adoro frequentar salas de cinema, assistir filmes vibrando e reagindo com pessoas ao lado, sentir toda a emoção de ver um filme em primeira mão, ou uma cópia restaurada em uma retrospectiva - sem contar que no festival podemos ter acesso a obras que nem sempre estrearão no circuito comercial.”

“Além do papel primordial que o Festival do Rio tem na formação de público na cidade, a Première Brasil é uma plataforma incrível para o lançamento e divulgação de nossos filmes, e para encontros e trocas entre profissionais do setor. Também acho admirável o festival ter acontecido ano após ano, mesmo em épocas em que havia poucos recursos, e por isso sou grata demais a toda a equipe, em especial à incansável Ilda Santiago”, ela agradece, reconhecendo a importância da diretora-executiva do festival.

Por tudo isso, Anita Rocha da Silveira está ansiosa pelo início da 26ª edição do festival, na próxima quinta-feira (3), mesmo sem concorrer a mais um Troféu Redentor. É uma relação que vai muito além: “O Festival do Rio é uma parte fundamental da minha história e mal posso aguardar para viver intensamente sua próxima edição”.

Viva você também o Festival do Rio 2024 entre os dias 3 e 13 de outubro. Confira aqui a programação completa e compre já o seu passaporte.

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