Publicado em 14/09/2024

Por João Vitor Figueira

Nota do editor: esta matéria faz parte da série especial #MeuRedentor, que celebra personalidades do cinema brasileiro que estão marcadas na história do Festival do Rio com trabalhos que se destacaram na competição da Première Brasil. Novas páginas desta história serão escritas na cerimônia de encerramento da edição de 2024 do evento, que acontece entre os dias 3 e 13 de outubro.

Com mais de quatro décadas dedicadas ao cinema, Lúcia Murat é dona de uma trajetória artística singular e politicamente contundente. A diretora construiu uma cinematografia marcada por uma assinatura humanista e nuançada, capaz de propor reflexões sobre momentos dolorosos da história política brasileira e construir personagens complexos sem maniqueísmos simplistas.

Com uma obra informada por elementos autobiográficos, seu cinema apresenta uma instigante dialética entre verdade e narrativa, uma vez que muitos de seus filmes foram aclamados por apresentar uma instigante fluidez na mescla de ficção e documentário.


Lúcia Murat na cerimônia de abertura do Festival do Rio 2023 — Foto: Festival do Rio

A jornada da realizadora no audiovisual se entrelaça de maneira significativa com o Festival do Rio, um espaço que, para ela, se tornou uma segunda casa ao longo dos anos. No total, quase um terço das 25 edições já realizadas do evento contaram com ao menos um trabalho da diretora na programação.

Murat também foi a primeira diretora mulher a vencer o Troféu Redentor de melhor direção duas vezes, por Quase Dois Irmãos (2004) e Praça Paris (2017), projetos que também foram premiados nas categorias de atuação, rendendo honrarias para Flávio Bauraqui e Grace Passô, respectivamente.


Lúcia Murat durante as filmagens de Quase Dois Irmãos — Foto: divulgação/Taiga Filmes

Com perfeito equilíbrio entre ficção e documentário, Que bom te ver viva (1989), primeiro longa-metragem da cineasta e um dos clássicos definidores de sua filmografia, venceu os prêmios de melhor filme e melhor atriz no Rio-Cine Festival, que se fundiu à Mostra Banco Nacional na gênese do Festival do Rio em 1999.

“O Festival do Rio, para mim, é a minha casa, desde o meu primeiro filme”, diz a diretora que exibiu o média-metragem O Pequeno Exército Louco (1984), seu filme de estreia, no Rio-Cine Festival, vencendo o prêmio da categoria e o de melhor montagem.

Irene Ravache em Que Bom Te Ver Viva, longa-metragem de estreia de Lúcia Murat que foi premiado no Rio-Cine Festival, um dos precursores do Festival do Rio - Foto: divulgação
Irene Ravache em Que Bom Te Ver Viva, longa-metragem de estreia de Lúcia Murat que foi premiado no Rio-Cine Festival, um dos precursores do Festival do Rio - Foto: divulgação

“Eu sempre passei meus filmes no Festival do Rio e espero continuar passando enquanto eu ainda estiver viva e fazendo cinema”, continua Murat, que também presidiu o júri da Première Brasil na edição de 2018. “Foi uma emoção muito grande quando recebi o prêmio de melhor direção, tanto pelo Quase Dois Irmãos quanto pelo Praça Paris, e espero continuar participando do festival, em alguma medida, como espectadora, que é sempre delicioso, e como cineasta também.”

Nos anos 1960, Lúcia Murat atuou como militante estudantil e ingressou na clandestinidade para enfrentar o autoritarismo do governo militar. Em 1971, foi capturada pelo regime ditatorial. Na prisão, sofreu sessões de tortura, experiência que reaparece em diversos de seus filmes desde então.

Alex Brasil, Lucia Murat, Digão Ribeiro e Joana de Verona no tapete vermelho de Praça Paris no Festival do Rio 2017 - Foto: Marina Calderon/R2Alex Brasil, Lucia Murat, Digão Ribeiro e Joana de Verona no tapete vermelho de Praça Paris no Festival do Rio 2017 - Foto: Marina Calderon/R2

“Acho que tanto Quase Dois Irmãos quanto Praça Paris tratam de uma questão que tem a ver com a minha prisão. O fato de eu ter sido torturada nessa passagem de adolescência para idade adulta me fez pensar sobre a violência o resto da vida. Quem é esse outro? Quem é essa pessoa que é capaz de tal barbaridade?”, indaga a realizadora.

Quase Dois Irmãos traz uma linha do tempo que cobre três momentos distintos das vidas de Jorginho e Miguel, da infância à fase madura, passando por seu período como jovens adultos. A narrativa acompanha a complexa relação de amizade e as dinâmicas de poder que existem entre uma pessoa negra moradora da favela e um branco de família de classe média no Rio de Janeiro.

Flávio Bauraqui e Caco Ciocler em Quase Dois Irmãos - Foto: divulgação/Taiga Filmes
Flávio Bauraqui e Caco Ciocler em Quase Dois Irmãos — Foto: divulgação/Taiga Filmes

Amigos de infância na década de 1950, eles se reencontram na prisão de Ilha Grande, penitenciária onde a ditadura militar alocou presos políticos e presos comuns na década de 1970. Flávio Bauraqui e Caco Ciocler interpretam os protagonistas na fase do filme que retrata o período do regime militar. No longa, Murat examina, a partir da perspectiva do conflito de classes, a pauta da desigualdade social, interligando temas como repressão política, desigualdade social e violência urbana.

“O Brasil tem muita dificuldade de trabalhar com a memória dos seus fatos dolorosos, uma coisa que vem desde a escravidão”, comenta a diretora. “Com a ditadura, a gente praticamente não tem memória, entendeu? A gente tem apenas um museu em São Paulo [sobre o assunto]. No Rio, estamos tentando transformar um antigo DOPS num museu e nunca conseguimos.”

Lúcia Murat durante as filmagens de Quase Dois Irmãos - Foto: divulgação/Taiga Filmes
Lúcia Murat durante as filmagens de Quase Dois Irmãos — Foto: divulgação/Taiga Filmes

Para a diretora, dona de um corpo de trabalho repleto de registros, depoimentos e abordagens sobre o período da ditadura militar, o cinema é uma arma poderosa para refletir sobre os traumas de nossa história coletiva enquanto lança luz para as questões relevantes do presente.

“Quando eu fiz o Quase Dois Irmãos, achei que eu nunca mais ia trabalhar sobre esse tema, mas a realidade continuou me puxando para isso. A realidade de hoje. Voltei a trabalhar com esse tema em O Mensageiro por causa da situação de polarização contemporânea”, comenta a diretora, citando seu mais recente lançamento.

Shi Menegat e Valentina Herszage em O Mensageiro, de Lúcia Murat — Foto: divulgação/Imovision

Shi Menegat e Valentina Herszage em O Mensageiro, de Lúcia Murat — Foto: divulgação/Imovision

O filme competiu pelo Troféu Redentor em 2023 e traz Valentina Herszage no papel de uma militante política que cria um laço com um soldado que dá plantão no quartel onde ela enfrenta a prisão política e a tortura. Para a cineasta, apresentar esse contato de realidades tão díspares de forma humanizada ajuda a construir pontes. “Essa possibilidade de diálogo pode romper com o ciclo de perversidade”, avalia.

“As pessoas não têm noção do horror que foi aquele período e o cinema permite transmitir isso. Tive uma experiência muito boa com O Mensageiro, ao exibi-lo para alunos do ensino médio. Eles disseram: ‘A gente conhece a ditadura por uma página de um livro, mas quando vemos o filme, sentimos o horror que foi aquilo.’”

Grace Passô, Joana de Verona e Lúcia Murat durante as filmagens de Praça Paris — Foto: divulgação/Taiga Filmes

Em Praça Paris, filme que fez Murat conquistar seu segundo Troféu Redentor de melhor direção de ficção no Festival do Rio, as plateias foram apresentadas a um drama psicológico que explora as tensões entre uma terapeuta e sua paciente, envolvendo questões de trauma e empatia em um país profundamente desigual.

As duas se conhecem na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde Glória, uma mulher negra e moradora da favela, trabalha como ascensorista. Lá ela faz sessões de terapia com a psicanalista Camila, uma mulher branca portuguesa que veio ao Brasil para desenvolver uma pesquisa sobre violência. Glória carrega os traumas de uma vida marcada por episódios de abusos e pela prisão do irmão que era chefe do tráfico do morro. A aproximação entre as duas mulheres de vidas tão distintas cria uma atmosfera de crescente tensão entre as duas.

Grace Passô em Praça Paris, de Lúcia Murat - Foto: divulgação/Taiga Filmes
Grace Passô em Praça Paris, de Lúcia Murat — Foto: divulgação/Taiga Filmes

“Acho importante a gente romper com o maniqueísmo, romper com o 'bonzinho, mauzinho'. Eu acho que os meus personagens são complexos e nós, na medida do possível, devemos trabalhar nessa complexidade. É o que eu tento fazer. Algumas vezes sou mais bem sucedida, algumas vezes menos, mas é o que eu tento fazer”, comenta a diretora e roteirista sobre as figuras cheias de nuances que apresenta em seus filmes.

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