Publicado em 12/10/2024

Equipe de Lispectorante participa de debate sobre o filme no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Dionisio
Equipe de Lispectorante participa de debate sobre o filme no Cine Odeon - CCLSR — Foto: Dionisio

“A salvação é pelo risco”, postula uma das frases mais famosas da escritora Clarice Lispector, que completa, “por pura alegria de viver”, que sem isso “a vida não vale a pena”. A citação serviu como lema — e importante linha de diálogo inserida no roteiro — de Lispectorante, longa-metragem de Renata Pinheiro que compete pelo Troféu Redentor na Première Brasil deste ano.

“Essa frase meio que resume o filme”, comentou a cineasta em um bate-papo com o público que acompanhou a sessão de seu longa-metragem na tarde da última sexta-feira (11), no Cine Odeon - CCLSR. A diretora disse que a gênese do projeto se deu ainda durante a pandemia, quando, com receios sobre o futuro, se apegou à esperança de que a humanidade encontraria um novo modo de vida, mais generoso, com “uma transformação geral para o bem”. 

O futuro utópico projetado não se concretizou, mas aquela esperança germinou nas telonas em Lispectorante, que une drama e romance com ares de fábula psicodélica, centrado em uma personagem que dá um salto de fé para seguir os desejos de seu coração (e de seu inconsciente).


Lispectorante, de Renata Pinheiro

Marcélia Cartaxo, figura importantíssima do universo lispectoriano nos cinemas, marcou gerações com sua atuação em A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral, pela qual conquistou um Urso de Prata no Festival de Berlim. 

A atriz paraibana retorna à órbita dos temas da escritora neste longa, onde interpreta a protagonista Glória, uma mulher madura em crise existencial e financeira, que volta para Recife, sua cidade natal, onde planeja retomar sua carreira como artista plástica. 

Após observar uma fenda no deteriorado casarão abandonado onde Clarice Lispector morou, no bairro da Boa Vista, Glória nota que há mais cores e luzes, no mundo e dentro de si mesma, do que ela conseguia enxergar. A partir daí, ela embarca em uma jornada cheia de fantasia e amor, em especial quando sua personagem cruza o caminho do artista andarilho Guitar (Pedro Wagner).

Renata Pinheiro, que começou sua carreira nos cinemas como diretora de arte e também é artista plástica, cita que o filme é uma ode à capacidade de “fabulação que o humano tem para se adaptar e sobreviver às amarguras da vida e a própria condição humana”, sejam artistas de ofício ou não.

A geografia de Recife é uma personagem do filme, e notar a situação de abandono ao qual a casa onde Lispector passou sua infância e início de adolescência foi “o detonador” para que essa construção fosse um elemento tão central do filme, explicou Sérgio Oliveira, corroteirista do longa-metragem.

Lispectorante, de Renata Pinheiro
Lispectorante, de Renata Pinheiro

Ele contou que, como Glória faz no filme, também espiou o que havia dentro da residência. Visualizar aquele “escombro” serviu como inspiração para o filme criar, em estúdio, uma espécie de cratera que representa o encontro da protagonista com diversos elementos e figuras de seu inconsciente. Entre esses personagens, há uma interpretada por Grace Passô. “O buraco é a riqueza imaginativa que ela tem. Ela está buscando uma obra e ela coloca aqueles personagens ali juntos. É uma coisa desordenada, muito surrealista mesmo”, comenta Renata.

A cantora Karina Buhr, que atua no filme, celebrou a oportunidade de trabalhar com Cartaxo, especialmente por tudo o que ela representa para o universo de Clarice Lispector. A artista também falou sobre a representação e sua cidade no filme. “O centro do Recife está morto e vivo ao mesmo tempo. Tem uma tristeza muito grande. É um lugar que, principalmente no pós-pandemia, morreu, mas, ao mesmo tempo, tem muita coisa ainda viva”, comentou, citando que o filme “camadas de fantasia e realidade” que estão presentes na cidade.

Renata Pinheiro, diretora de Lispectorante
Renata Pinheiro, diretora de Lispectorante — Foto: Dionisio

Durante o debate, Renata contou que ter a casa como um dos personagens do filme reflete seu conjunto de interesses no audiovisual, que inclui explorar de forma poética a vida interna de objetos inanimados, citando seu longa-metragem anterior, Carro Rei (2021).

A diretora, que disse preferir a “estrada tortuosa” da experimentação, apresenta em Lispectorante uma grande riqueza visual, com efeitos especiais, luzes, sequências oníricas. Pinheiro conta que levar essa visão para a tela envolve um trabalho muito grande, inclusive retórico, para convencer “selecionadores de projetos” que seus filmes devem ser financiados e promovidos. “Tenho que explicar muito bem, dando muitas referências de como aquilo é possível de ser realizado”, conta.

Para Sérgio Oliveira, essa originalidade do cinema de Renata faz com o filme se posicione de maneira peculiar dentro da produção audiovisual brasileira contemporânea. Em sua opinião, há filmes muito parecidos sendo realizados atualmente e o cinema precisa de pessoas que se arrisquem mais.

“Como Renata tinha falado [em uma entrevista], este é um filme que não segue algoritmo, não vem de uma causa urgente, não vem de uma grande comoção, mas é um filme sobre o esquecimento, sobre pessoas que são quase invisíveis dentro da sociedade, sobre uma mulher madura se reinventando”, avaliou.

Marcélia Cartaxo no debate sobre o filme Lispectorante realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Dionisio
Marcélia Cartaxo no debate sobre o filme Lispectorante realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Dionisio

A presença de Marcélia Cartaxo no debate foi muito celebrada pela plateia. Em uma das interações do público, um membro da audiência disse que a atriz é “uma das artistas mais importantes do nosso cinema”. 

Após o término da sessão, muitos fãs se aproximaram dela para para pedir fotos. Ainda no bate-papo, Cartaxo ressaltou a importância do filme tratar de um romance (um raro filme sobre uma mulher mais velha que se relaciona com um homem jovem), disse que esperar que o longa chame a atenção do poder público para a necessidade de se preservar o patrimônio histórico cultural e fez sua análise do significado do título do filme: “Lispectorante é um estado de ser”.

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