Publicado em 07/08/2024


Eduardo Coutinho em Últimas Conversas (2015) — Foto: Divulgação

Por João Vitor Figueira

Eduardo Coutinho, nome de maior estatura do cinema documental brasileiro, dedicou mais de meio-século de sua vida ao audiovisual e imprimiu em suas obras um olhar empático, humanista e contundente sobre a sociedade brasileira, com foco especial nas narrativas que emergem do cotidiano de pessoas comuns.

“Aquilo que existe, pelo simples fato de existir, já me interessa”, chegou a sintetizar o realizador ao explicar o que o motivava a filmar em depoimento concedido para o filme Banquete Coutinho, de Josafá Veloso, que traz o diretor na rara posição de entrevistado.

Nesta quarta-feira, 7 de agosto, é comemorado o Dia Nacional do Documentário Brasileiro, data que permite uma oportuna celebração do legado de Coutinho. Em fevereiro deste ano, a trágica morte do cineasta completou 10 anos. A primeira década sem a presença inquieta do realizador serviu para atestar novamente, ainda que sobre isto não restassem dúvidas, o caráter vigoroso e eloquente de sua obra, que se faz presente e relevante até hoje.


Eduardo Coutinho no filme Banquete Coutinho (2019) — Foto: Divulgação

Para Ricardo Cota, crítico de cinema e curador do Festival do Rio, Coutinho segue como uma referência básica para todos os cineastas. O jornalista considera que a obra do realizador ampliou a percepção do público sobre as potências do formato documental.

“O grande legado que Eduardo Coutinho deixou foi o legado da escuta, foi transformar a entrevista no documentário não em uma entrevista amarrada nos tempos da montagem ou nos tempos da exigência de uma edição. As entrevistas de Coutinho foram entrevistas pautadas pela escuta do entrevistador. O tempo do entrevistado era um tempo maior, o tempo em que cabia ao entrevistado investigar, absorver, captar cada nuance do dito, do interdito e até do não dito”, opina.

Nascido em São Paulo, em 1933, Coutinho chegou a estudar Direito na Universidade de São Paulo (USP), mas desenvolveu o que seria seu verdadeiro ofício na prestigiosa escola de cinema IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques), em Paris, para onde se mudou em 1957.


Eduardo Coutinho no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC) em Paris, 1959 — Foto: Arquivo Eduardo Coutinho / Acervo IMS

De volta ao Brasil, em 1960, atuou na União Nacional de Estudantes (UNE), teve contato com grandes nomes do Cinema Novo e iniciou as filmagens do que se tornaria a grande obra-prima de sua filmografia: Cabra Marcado Para Morrer, projeto idealizado como uma ficção sobre o assassinato de um líder camponês, foi interrompido pela ditadura militar em 1964 e jubilosamente retomado décadas depois, sendo lançado em 1984, reformulado para o formato de documentário.


Cabra Marcado Para Morrer (1984) — Foto: Divulgação

Antes de se dedicar exclusivamente ao cinema, Coutinho ainda se dedicou ao jornalismo ao integrar a equipe do programa Globo Repórter em 1975, onde trabalhou até ser reconhecido por seu trabalho em Cabra Marcado Para Morrer, que chegou a ser premiado no Festival de Berlim. Para além do cinema documental, Coutinho chegou a dirigir filmes de ficção, incluindo um episódio do longa-metragem ABC do Amor (1966), e assinou o roteiro de Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), de Bruno Barreto.

“É difícil mensurar o legado do Coutinho, mas ele é sem dúvida o maior documentarista brasileiro e também um dos maiores cineastas e profissionais do audiovisual brasileiro de todos os tempos”, pontua o jornalista e crítico de cinema Lucas Salgado. “Eu acho que cabe discutir se Cabra Marcado Para Morrer é o melhor filme brasileiro de todos os tempos. É um filme sobre memória, é um filme sobre história, é um filme sobre a simplicidade das pessoas e eu acho que isso que o Coutinho conseguia resgatar melhor.”


Eduardo Coutinho nas filmagens de O Fio da Memória (1991) — Foto: Arquivo Eduardo Coutinho / Acervo IMS

Cabra Marcado Para Morrer marca o início da carreira de Coutinho como realizador de longas-metragens documentais. Nos anos seguintes, o cineasta exercitaria sua veia autoral e seu cinema humanista em produções celebradas como Fio da Memória (1991), Boca de Lixo (1993, média-metragem) Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Jogo de Cena (2007) e As Canções (2011), trabalhos com ampla circulação e reconhecimento no circuito de festivais do país, incluindo o Festival do Rio.

Entre seus trabalhos no século 21, destacam-se, especialmente, Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007), que junto com Cabra Marcado Para Morrer (1984), integram a lista dos 100 melhores filmes brasileiros segundo a ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), na 28ª, 17ª e 4ª colocação, respectivamente.


Jogo de Cena (2007) — Foto: Divulgação

“Edifício Master é um filme quase perfeito. Aquele filme é uma coletânea de histórias e narrativas incríveis. A gente fica pensando em quantas histórias não existem em cada prédio daqueles em Copacabana e no Brasil”, comenta Salgado, que assina o texto dedicado ao longa-metragem no livro dedicado ao ranking da ABRACCINE organizado pela associação.

Para Ricardo Cota, a popularidade de Edifício Master se deve à sensibilidade do diretor, que costurou um relato universal a partir das histórias particulares dos habitantes de um mesmo prédio na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.


Edifício Master (2002) — Foto: Divulgação

“É um filme que teve uma comunicação muito forte com o público, porque ele aproximou as pessoas desse universo”, diz Cota. “Na verdade, todos habitamos totalidades constituídas por particularidades. Acho que Coutinho, de certa forma, conseguiu, com o Edifício Master, resumir e expressar isso de uma maneira cinematográfica, documental, que mudou completamente a percepção do que era o cinema documentário.”

Uma das sequências mais emblemáticas de Edifício Master e de toda a filmografia de Eduardo Coutinho é a cena em que um dos moradores do Edifício Master canta, tomado pela emoção, a canção “My Way”, sucesso na voz de Frank Sinatra. “É aquele momento em que o personagem e a obra de arte se manifestam de uma maneira única, exclusiva, particular, e acho que era isso que Coutinho buscava, a particularidade de cada um”, pontua Cota.


Cena de Edifício Master que traz um dos entrevistados, o Sr. Henrique, cantando "My Way" — Foto: Reprodução

Para capturar momentos assim, Coutinho já declarou contar com a colaboração do acaso, da surpresa e das incertezas do processo de produção de um filme, citando estes elementos como os fatores que mais o interessavam ao rodar um documentário. “Eu acho que as relações dão certo quando não são pergunta e resposta, mas um ato colaborativo. O ato de filmagem é assim: a pessoa me diz alguma coisa que nunca vai repetir, nunca disse antes ou dirá depois. Surge naquele momento”, já disse o cineasta em uma entrevista.

Salgado considera que a sequência de “My Way” em Edifício Master possa ser percebida, no corpo da obra do cineasta, como uma espécie de teaser de As Canções, penúltimo filme que Coutinho rodou em vida — antes de Últimas Conversas (2015) —e último finalizado pelo cineasta.


Eduardo Coutinho recebe o Troféu Redentor na cerimônia de premiação do Festival do Rio 2011 — Foto: Festival do Rio

O filme marcou a derradeira participação de Eduardo Coutinho na competição do Festival do Rio. E o resultado foi a aclamação total. Por seu trabalho neste projeto, o diretor venceu o Troféu Redentor duas vezes na cerimônia de premiação em 2011, acumulando os prêmios de Melhor Documentário concedidos tanto pelo Júri Oficial quanto pelo Júri Popular.


As Canções (2012) — Foto: Divulgação

As Canções traz pessoas comuns contando e cantando as músicas que marcaram momentos decisivos de suas trajetórias pessoais. “A canção é a coisa mais rica que o Brasil tem. Não é nem sequer a música ou a melodia, é a canção”, disse Coutinho em entrevista concedida em 2011 para Lucas Salgado, que guarda boas recordações das conversas que teve com o realizador.

“Uma coisa que lembro bem de meu primeiro encontro com ele foi me surpreender com seu estilo um pouco sisudo, com pinta de mal-humorado, embora com um humor ácido e jamais mal-educado”, recorda Salgado. “Me parecia um contraponto àquela figura cuja voz carinhosa conversava com suas entrevistas nos filmes, sempre com muita afeição e empatia. No fundo, me parecia não muito afeito a entrevistas. Queria que seus filmes falassem por ele. E, sem dúvida, o faziam.”

“Lembro de encontrar Coutinho na fila para uma sessão de Tabloide, de Errol Morris, no Festival do Rio de 2011”, lembra o jornalista. “Pouco depois, quando o encontrei para uma entrevista, quis saber o que tinha achado do filme. E ele me disse que não tinha gostado e que achava Morris um diretor ácido demais com seus entrevistados, o que mostra um pouco o respeito que Coutinho tinha com seus personagens.”

Os filmes de Eduardo Coutinho no Festival do Rio

Ao todo, os filmes dirigidos por Eduardo Coutinho integraram a programação de oito edições do Festival do Rio, incluindo a primeira edição do evento, realizada há 25 anos.


Eduardo Coutinho na cerimônia de premiação do Festival do Rio 2011 — Foto: Festival do Rio

“Coutinho se tornou uma espécie de presença fundamental do Festival do Rio, que com certeza, se não tivesse sua vida interrompida tragicamente, hoje estaria fazendo parte dessa grande estrutura de discussão, de debate, de conhecimento, de promoção do audiovisual e, sobretudo, do audiovisual brasileiro, que é o Festival do Rio”, considera o curador do festival

A seguir, relembre os filmes de Eduardo Coutinho que já integraram a programação do Festival do Rio ao longo dos anos.

  • Festival do Rio 1999

Filme: Santo Forte
Mostra: Première Brasil

  • Festival do Rio 2001

Filme: Babilônia 2000
Mostra: Cine BR

  • Festival do Rio 2002

Filme: Edifício Master
Mostra: Première Brasil - Competição - Doc.

  • Festival do Rio 2005
Filme: O Fim e o Princípio
Mostra: Première Brasil - Hors-Concurs - Documentário

  • Festival do Rio 2007

Filme: Jogo de Cena
Mostra: Première Brasil - Hors Concours

  • Festival do Rio 2011
Filme: As Canções
Mostra: Première Brasil - Competição - Doc.
Prêmios: Melhor Documentário (Júri Oficial e Júri Popular)

  • Festival do Rio 2013

Filme: As Canções
Mostra: O Melhor da Première Brasil

  • Festival do Rio 2023

Filme: Cabra Marcado para Morrer
Mostra: A Cinemateca É Brasileira



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