Interceptado denuncia a crueldade e o rastro de destruição deixado pela Rússia na invasão da Ucrânia Baseado em gravações interceptadas, o documentário mostra como o exército russo desumaniza os ucranianos apesar de não conhecer seu povo e sua terra.
Debate do filme Interceptado — Foto: Rodrigo Torres
Por Rodrigo Torres
A sala do Estação NET Rio estava lotada, no fim da noite desta terça-feira (9), e o público curioso pelo que seria de Interceptado, documentário de Oksana Karpovych sobre a invasão russa à Ucrânia em fevereiro de 2022. "Cada filme que nós escolhemos é também uma viagem e uma conexão com o público do festival. Não só com a intenção de sintonizar com o que nós imaginamos que o público quer ver, mas também com as realidades que nós sabemos que precisam ser contadas aqui", disse a diretora executiva do Festival do Rio, Ilda Santiago.
"Este filme passou no Festival de Berlim e me tocou profundamente, por trazer mais informações em meio a tantas notícias truncadas que nós recebemos dessa guerra e do que está acontecendo. Apesar de tudo parecer perto, tudo está muito longe. Esse filme vai trazer uma outra visão do conflito para vocês”, disse Ilda, antecipando o que estava por vir nos longos 90 minutos de duração de Interceptado.
Interceptado, de Oksana Karpovych
Interceptado soa longo porque é um filme duro. A câmera, sempre estática, encena com rigor o rastro de destruição deixado pelo exército russo após a invasão da Ucrânia, mostrando um dia a dia difícil em meio aos escombros. A narração é toda baseada em áudios de soldados russos para as suas familiares, sempre do sexo feminino, em relatos gráficos da guerra e com um forte tom de desumanização do povo ucraniano.
“É muito difícil encontrar palavras para descrever o horror da invasão russa na Ucrânia. E, acreditem, foi muito difícil encontrar imagens que pudessem ser mostradas de forma cinematográfica neste documentário”, disse Oksana, sugerindo que teve a preocupação de compilar imagens cotidianas mais palatáveis que as descrições terríveis interceptadas em áudio pelas autoridades de seu país.
Interceptado, de Oksana Karpovych
Oksana conta ainda que “viveu uma vida estranha” durante esse tempo, vivendo uma jornada dupla: “Durante o dia, eu testemunhava os ataques e a violência no norte da Ucrânia, cobrindo as consequências da ocupação. E, ao mesmo tempo, de noite, eu ouvia essas gravações que pra mim soavam absolutamente absurdas, porque complementavam as imagens que eu tinha testemunhado durante o dia, e eram comentários muito loucos, muito absurdos”, relata a diretora.
Para exprimir esteticamente essa sensação de estranheza sem apelar a imagens gráficas de sangue e cadáveres, ela adota uma fotografia dessaturada e teve especial preocupação com o som de Interceptado. “A primeira montatem do filme tinha só a trilha sonora”, diz Oksana, ressaltando o valor do som para a experiência cinematográfica.
Interceptado, documentário de Oksana Karpovych
Entretanto, ela faz questão de ressaltar que a base angular de Interceptado são mesmo os áudios e explica como definiu aquele corpus. “Após avaliar todo aquele material, eu percebi que os áudios que mais me interessavam eram as conversas dos homens para as mulheres. Porque os soldados russos falavam com suas mães, irmãs e esposas com mais intimidade. Eles se abriam mais, compartilhando situações mais triviais e profundas da guerra.
Por fim, Oksana Karpovych destaca um dos elementos mais interessantes de Interceptado: “As mulheres são frequentemente mais cruéis que os homens” nos áudios. “Foi muito doloroso ouvir aquilo. A princípio, me fez pensar que elas estavam agindo daquele modo para manter os soldados motivados e agressivos no campo de combate”, refletiu a diretora, acrescentando que a situação era um tanto mais complexa.
No início de Interceptado, os soldados revelam seu ódio pelo povo ucraniano sem nuances. Conforme o filme avança, eles se mostram admirados pelo poder de consumo, estilo de vida e até o solo e o gado da Ucrânia. Já no final, em ordem cronólogica coerente com a evolução do conflito (segundo a diretora), os homens da guerra vão se tornando mais críticos à operação militar especial russa e ao presidente Vladimir Putin.
Interceptado, documentário de Oksana Karpovych
"Isso me fez pensar na sociedade russa como um todo. Eu percebi que as pessoas longe da guerra estavam vivendo uma realidade diferente. Paradoxalmente, a violência e a guerra humanizavam aquelas pessoas. Por outro lado, as pessoas que ficaram na Rússia permaneceram crueis, cheias de ódio, sendo desumanizadas pela propaganda do governo”, argumenta Oksana Karpovych.
Você pode conferir o ponto de vista da cineasta sobre a Guerra da Ucrânia nas duas sessões restantes de Interceptado no Festival do Rio 2024:
SÁB (12/10) 14:00 Estação NET Rio 3
DOM (13/10) 13:45 Estação NET Gávea 3
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