Entrevista: diretor e produtor de Sebastian analisam ‘vergonha da vergonha’ do trabalho sexual e das identidades queer Longa de Mikko Mäkelä se debruça sobre Max, um jovem que vira um profissional do sexo como parte da pesquisa de seu romance de estreia
Sebastian, de Mikko Mäkelä
Por Laís Malek
Um escritor de 25 anos decide trabalhar como profissional do sexo para ganhar inspiração para um livro. A premissa de Sebastian, filme do finlandês Mikko Mäkelä, pode parecer só mais uma história sobre uma vida dupla, mas o longa surpreende ao trazer uma animadora abordagem positiva sobre o sexo. O filme foi exibido na mostra Expectativa do Festival do Rio 2024, em sessões que contaram com a presença do diretor e do produtor.
A jornada de Max, o protagonista, e sua transformação em Sebastian para explorar seus desejos repreendidos até para ele mesmo, passa por questões universais. A sensação de não pertencimento, a dificuldade de se mostrar vulnerável, o desejo por intimidade, a busca por uma arte autêntica são alguns dos temas abordados no filme. Na entrevista a seguir, feita durante o Festival, Makela e o produtor James Watson abordam diferentes aspectos da narrativa e dão opiniões sobre o processo, o resultado a a recepção do filme.
Sebastian, de Mikko Mäkelä
Qual você diria que é a mensagem principal do filme?
James Watson: Acho que uma das ideias principais é perguntar: já que vivemos em uma época onde a experiência parece ser tão valorizada como parte do processo criativo, você direcionaria a sua vida para ter experiência para falar sobre isso? Quão longe você iria pela história? E também tem um personagem que está se dando uma permissão para fazer algo sob uma falso pretexto que é a escrita, quando na verdade ele realmente quer fazer isso. Acho que é uma mistura dessas duas coisas.
Um sentimento que acompanha o protagonista ao longo da trama é o de se sentir “outro” em relação aos demais: no trabalho, com os amigos, com a família. Você acha que é um sentimento que muita gente se identifica?
Mikko Mäkelä: Um dos elementos-chave do filme é que ele é sobre a comunidade queer, e fala sobre temas de identidade, pertencimento e aceitação. Há uma investigação sobre vergonha e complexidade dentro das identidades queer, especialmente em como são afetadas pelas expectativas sociais. Acho que o filme reverbera com muitas pessoas queer que se sentem à margem, tentando explorar suas identidades ao mesmo tempo em que lidam com a pressão de se “adequarem”. A ideia de pertencer é crucial na experiência queer, e o filme fala sobre essa necessidade de conexão e compreensão.
No começo do filme, vemos Max escrevendo seu livro em terceira pessoa, e é só nas últimas cenas que ele passa a escrever em primeira pessoa. Como essa mudança representa a jornada do personagem?
MM: Eu queria escrever uma história de autodescoberta, mas ao mesmo tempo uma história de amadurecimento. É um personagem que é muito firme e rígido em suas certezas no início, para alguém que de certa forma é bem ingênuo. Ele precisa passar por um processo de descoberta e autorrealização, ter suas certezas sobre si abaladas e questionadas. Me interesso em escrever personagens que se surpreendem consigo e precisam questionar quem são.
Como roteirista do filme, você acha que suas questões sobre escrita acabam transparecendo através do protagonista? De que maneiras?
MM: É uma grande tensão, até uma ironia, que ele faz uma espécie de autoficção em que ele escreve coisas muito íntimas e quer ser tão autêntico no texto a ponto de escrever seus sentimentos e experiências reais, mas ao mesmo tempo é muito privado na vida pessoal. Tem uma tensão entre querer ser incrível e precisar que o seu trabalho seja incrível, e ao mesmo tempo manter essa distância. E a dificuldade justamente é que para criar algo que as pessoas se conectem é preciso se mostrar vulnerável e abrir mão da vontade de se proteger. É algo que eu me identifico e também tenho dificuldade, e abre muitas perguntas importantes sobre escrita, ficção e verdade, o que significa escrever uma autobiografia, se as autobiografias representam de fato a verdade. São muitos os debates sobre verdade na ficção, e o filme quer entrar nessa conversa.
Max é um personagem que não gosta de ter uma presença online, mas é através da internet que ele conhece os clientes de seu trabalho como Sebastian. Como você enxerga a onipresença das redes sociais atualmente?
JW: O Max não é, de fato, ele mesmo online, e isso é um reflexo de que nós também podemos não ser. Todo mundo está fingindo ser uma diferente versão de si. Mesmo se você mostrar seu rosto em um perfil no OnlyFans, geralmente é uma persona ou um nome falso. Mas a ideia de anonimato vem de muito tempo, as pessoas sempre escreveram com pseudônimos. Até hoje, ninguém sabe quem é a Elena Ferrante, se esse é o nome verdadeiro dela ou não. Acho que no caso do Max, ele tem vergonha de ter vergonha, não porque acha o que ele faz vergonhoso, mas porque teme o julgamento nos ambientes literários que ele deseja estar.
O trabalho sexual ainda carrega bastante estigma, mesmo dentro das áreas mais progressistas da sociedade. Como você acha que o filme pode impulsionar essa discussão?
MM: Eu queria questionar os preconceitos e vieses das pessoas sobre o trabalho sexual. Até uma pessoa como o Max, que não quer julgar ninguém e não sentir vergonha por ser um profissional o sexo, ele se interessa por essa ideia porque é temporária e por isso tem menos estigma. No começo ele precisa da licença para fazer isso porque é parte da pesquisa, não consegue nem admitir para si que é uma vontade. Só depois de ser confrontado com seus desejos e escrever sobre isso é que ele consegue acessar uma nova profundidade para poder dizer que ele quer ser artista e trabalhar com sexo. E por que ele deveria escolher entre um e outro?
Sebastian, de Mikko Mäkelä
O filme, naturalmente, tem muitas cenas de sexo, e ultimamente a discussão sobre cenas assim serem consideradas “excessivas” vem ganhando força, especialmente entre a geração Z. Qual é a visão de vocês sobre isso? Em algum momento ficaram receosos sobre a recepção?
MM: A geração Z parece ser particularmente crítica sobre cenas de sexo no cinema, mas também é uma geração que parece estar fazendo menos sexo, no geral. Para mim, é algo difícil de comentar, porque eu vejo o sexo como algo inato, instintivo, essencial, pelo menos para a maioria das pessoas, e essa é a perspectiva pela qual faço meus filmes. Nesse caso, é também uma forma de conexão, alguém como o Max que é bem fechado emocionalmente vê o sexo como uma maneira de se conectar de jeitos que ele não conseguiria. O filme vê o sexo também como um meio de facilitar comunicação e conexão entre as pessoas, e de maneira bem positiva.
JW: O princípio que eu e o Mikko sempre temos em mente quando desenvolvemos algo de fazer filmes que gostaríamos de ver. Espero que seja um filme que a geração Z vai ter algo a dizer, mesmo que seja para falar que tem muito sexo. E o interessante disso é que uma reação assim na verdade é um reflexo de quem está consumindo aquela mídia, seja um livro, filme, pintura ou outra coisa. A interpretação vem muito das expectativas, então estou animado para ouvir o que as pessoas têm a dizer.
Muito vem se falando também sobre a presença de um coordenador de intimidade nas cenas de sexo. Vocês tiveram esse profissional no set?
JW: Sim, foi a primeira vez que eu trabalhei com um coordenador de intimidade e foi ótimo. O que ele fez foi checar com todos quais eram os limites de cada um, o que se sentiam confortável para fazer, quais partes do corpo gostariam de mostrar. E garantir que todos estejam de acordo na hora de gravar e que todo mundo se sinta ouvido e apoiado. É uma coisa bem direta, manter a comunicação o tempo todo e respeitar os limites. Se uma produção tem condições de contratar esse profissional é ótimo, mas também acho que é possível gravar sem, respeitando todos esses princípios.
Por fim, o que você achou da recepção do filme pelo público brasileiro? Foi uma reação diferente de outros países?
MM: É sempre interessante comparar a recepção em países diferentes, porque em cada sociedade o sexo é algo que as pessoas tem atitudes bem diferentes. Em alguns lugares são mais abertos, outros mais puritanos. Tivemos muitas exibições nos Estados Unidos, por exemplo, e lá a relação com sexo é bem mais complicada. A minha impressão é que aqui as pessoas são mais abertas em relação à sexualidade, então foi animador ver essas outras reações.
Mikko Mäkelä e James Watson, diretor e produtor de Sebastian, no Festival do Rio 2024 — Foto: Cláudio Andrade
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