Publicado em 13/10/2024

Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot
Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot

Dono de um largo sorriso no palco, o lendário pianista Erroll Garner, que fundiu diversas vertentes do jazz em seu estilo rapsódico e espontâneo, era chamado de “The Happy One” (“O Alegre”, em tradução livre) por seus colegas músicos. 

Orador tímido e nem sempre confortável em entrevistas ou na interação verbal com o público, o artista iluminava-se quando estava diante das 88 teclas do piano, instrumento que fazia soar como uma orquestra completa — por sua virtuose autodidata, fãs diziam que ele tinha 40 dedos nas mãos.

Em função dessa aura, sua persona privada assumiu uma faceta enigmática para o grande público, ainda que “alegremente misteriosa”, como apresenta o documentário Misty – A História de Erroll Garner, dirigido por Georges Gachot, que integrou a mostra Itinerários Únicos, seção do 26º Festival do Rio dedicada à trajetória de artistas singulares. O filme é um dos destaques da repescagem do festival e será exibido às 21h15 no Estação NET Gávea 2, na próxima segunda-feira, 14/10.

Georges Gachot, diretor de Misty – A História de Erroll Garner, no Estação NET Rio - Foto: Rogerio Resende
Georges Gachot, diretor de Misty – A História de Erroll Garner, no Estação NET Rio durante o 26º Festival do Rio — Foto: Rogerio Resende

“Espero que o filme apresente bem esse mistério”, comenta Gachot, cineasta franco-suíço, em entrevista para o site do Festival do Rio. O diretor elabora que os detalhes da jornada pessoal do artista evocam uma melodia muito mais melancólica do que sua figura alegre nos palcos. “A vida dele foi um drama. A relação dele com sua empresária foi muito difícil até o final. Ele abandonou a filha. Foi complicado tentar descobrir quem foi, exatamente, Erroll Garner”, comenta.

Mesclando imagens de arquivo que trazem entrevistas antigas e apresentações de Garner, o diretor monta o quebra-cabeça da vida do jazzista baseando-se apenas nos depoimentos de pessoas que conheceram o artista, como os músicos que o acompanharam em turnês e para quem ele foi “uma figura paterna”; Kim Garner, filha biológica que o músico nunca assumiu oficialmente; Rosalyn Noisette, parceira do artista nos seis últimos anos da vida de Erroll; e Jim Doran, biógrafo e amigo do instrumentista e compositor.

Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot
Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot

Uma das personagens cuja história mais impacta o público em um nível emocional é Kim, filha secreta do pianista que nunca foi assumida por ele e até hoje não consta oficialmente como sua herdeira. Ela é uma mulher que já sofreu muito com essa ausência paterna, chegando ao ponto de mudar de sala ao ouvir o som de um piano tocar. Gachot foi apresentado a ela por Jim Doran e contou que esse encontro foi o que o convenceu de que era possível rodar Misty, mas o cineasta assume: “O processo do filme foi mesmo muito difícil para a Kim”.

O músico, morto em 1977, aos 55 anos, desenvolveu uma identidade no instrumento que bebe de fontes como ragtime, bebop e swing, mas também dos titãs da música clássica ocidental. Gachot nutre um encanto pela obra de Garner desde a infância, paixão que compartilhava com seu irmão, Pierre, a quem o filme é dedicado.


Georges Gachot, diretor de Misty – A História de Erroll Garner, no Estação NET Rio durante o 26º Festival do Rio — Foto: Rogerio Resende

“Na minha família, não gostavam de jazz. Eu não podia ouvir jazz em casa. Quando meus pais estavam em casa só podíamos ouvir música clássica”, recorda o documentarista, que também é apaixonado por música brasileira e dá dirigiu filmes sobre figuras colossais da MPB, como Maria Bethânia, João Gilberto e Nana Caymmi.

Também pianista, Gachot considera que a música de Garner pode parecer simples, mas tem uma complexidade grande, “cheia de riqueza e ritmo”. O diretor conta que, em função dessa relação próxima com a obra do jazzista, passou a juventude tentando imitá-lo ao teclado, sofrendo bastante ao saber de sua morte em 1977.


Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot

Uma das habilidades mais exaltadas no talento de Garner era sua capacidade de improvisar. Além disso, o artista, que não sabia ler partituras, não costumava informar sua banda sobre quais composições iria tocar em um concerto, nem dizia em qual tom estavam as músicas. Às vezes, uma mesma faixa ganhava arranjos diferentes dependendo do dia e do humor do artista no palco.

Perguntado se também improvisou durante as filmagens de Misty - A História de Erroll Garner, Gachot contou que o processo do filme “foi complicado” e que demorou muito para finalizá-lo. O cineasta citou não ter encontrado muitos materiais sobre o artista para embasar sua pesquisa, por isso recorreu principalmente às pessoas que fizeram parte do círculo íntimo de Erroll.

Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot
Misty – A História de Erroll Garner, de Georges Gachot

Como seu ídolo, tentou trazer um clima de surpresas e imprevisibilidade para as gravações. “Essa é a minha forma de fazer o filme ter uma autenticidade forte”, argumenta o diretor “Você consegue sentir as emoções que os meus protagonistas têm.”

O realizador não gosta de se encontrar com seus entrevistados antes de ligar as câmeras. Além disso, o diretor quis construir momentos de forte impacto emocional no longa, registrando o primeiro encontro entre Kim Garner e Rosalyn Noisette; a primeira conversa em décadas entre o baterista Jimmy Smith e Kim; e mostrou a Rosalyn onde o músico planejava morar com ela antes de morrer.

Ao longo de 12 semanas, Gachot rodou por cidades como Las Vegas, Los Angeles, Pittsburgh, Washington e Nova York. Ele também passou pela pequena Carmel-by-the-Sea, onde tentou fazer com que Clint Eastwood participasse do filme, sem sucesso. O veterano ator e diretor tem a canção “Misty” como um elemento central do thriller Perversa Paixão (Play Misty for Me, 1971).


Cartaz de Misty – A História de Erroll Garner

Garner obteve sucesso comercial e reconhecimento do público em vida, mas talvez, em perspectiva histórica, seu legado não tenha sido defendido com tanta intensidade pelas gerações posteriores, que não chegaram a depreciar ou diminuir o músico, mas exaltam mais o legado de figuras como Thelonious Monk, Art Tatum, Bill Evans, Oscar Peterson ou McCoy Tyner.

“O jazz, hoje em dia, não é tão popular quanto na época de Erroll Garner. Talvez isso seja complicado para esse filme”, admite o diretor. Entretanto, ele considera que a memória do autor de “Misty” ainda é forte o suficiente, o que impactou, inclusive, os recursos aos quais ele teve acesso para produzir seu longa-metragem.

“Durante o processo de financiamento do filme, recebi um orçamento muito maior [do que esperava] porque muita gente com poder de decisão para aprovar ou não o envio do dinheiro, dizia: ‘Ah, meu pai ouvia. Eu gostava. Eu ouvia o disco Concert By The Sea em casa, ouvia ‘Misty’.” Ainda assim, Gachot concorda que é seu filme também serve como instrumento de resgate da obra do músico.


Gilberto Gil e Georges Gachot durante a sessão de gala do documentário Rio Sonata no Festival do Rio 2010 -  Foto: 

Ao notar que muitos dos músicos biografados em suas obras têm datas de nascimento correspondentes a um mesmo signo do zodíaco (Martha Argerich, Maria Bethânia, João Gilberto e Erroll Garner), Gachot brinca que seu próximo filme se chamará Gêmeos. Quem sabe não teremos também um filme sobre Chico Buarque, Paul McCartney ou Brian Wilson, que também são do mesmo signo.

Deixando as brincadeiras de lado, Gachot conta que planeja retornar aos filmes sobre ídolos da música brasileira com um documentário dedicado à Djavan, revelando que já fez contato com o artista e com seu empresário. 

O realizador franco-suíço também pretende usar filmagens que não entraram no corte final de seus filmes para trazer um panorama ampliado da MPB com um olhar estrangeiro. “Por que a música brasileira tem um impacto tão grande sobre a minha vida? Passei quase 20 anos aqui. Por quê? Quero descobrir isso e contar nesse filme.”

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