Entre os fantasmas e a redenção Carlos Alberto Mattos comenta os filmes Redemption Song e A Terra dos Fantasmas vista pelos Bushmen
Por Carlos Alberto Mattos
Dois documentários na programação do festival se inserem no trânsito entre África e Europa, confrontando realidade e imaginação. A TERRA DOS FANTASMAS VISTA PELOS BUSHMEN pode ser visto como uma comédia acerca da descoberta da Europa por aborígenes da Namíbia, enquanto REDEMPTION SONG é um drama sobre as ilusões dos africanos em relação à fuga para o continente europeu.
A TERRA DOS FANTASMAS… começa numa aldeia do Kalahari que, impossibilitada de viver da caça desde que o governo proibiu a prática, sobrevive de receber turistas para demonstrações do seu modo de vida primitivo. Já vai longe o tempo em que, ao ver um branco, eles julgavam estar diante de um fantasma. O filme de Simon Stadler nasceu do convite de uma ONG alemã para que eles próprios se tornassem momentaneamente os turistas. Um grupo visita pela primeira vez outra etnia e as cidades maiores da Namíbia. Mais tarde, quatro deles embarcam para dar workshops na Alemanha e na Dinamarca. Parente distante da contra-etnografia de Jean Rouch, o documentário se limita a registrar as experiências e comentários dos aldeões a respeito de aviões, metrôs, supermercados, shopping centers, metrôs, espelhos, piscinas, automatizações urbanas e o frio europeu. Todos se comportam como esperado para um filme de boas intenções: rejeitam o ruído e a velocidade das metrópoles, criticam a mania de correr e trabalhar dos brancos – que lhes parecem alvejados pela abundância de água na Europa – e não demoram a querer voltar para casa. Até porque descobrem que existem brancos pobres, e os animais também ali não podem ser caçados e comidos livremente. São simpáticos e extrovertidos. Por isso mesmo passam a impressão de que, como personagens do filme, continuam “em exposição” para os turistas-espectadores do mundo desenvolvido.
Bem diferente é o clima de REDEMPTION SONG (título de uma música de Bob Marley que conclama os negros a se libertarem da escravidão mental). Aboubakar Cissoko, o protagonista e narrador, é um refugiado da Guiné que passou pela Líbia e acabou expelido de lá e posto num barco rumo à Itália. Instruído e consciente, ele passou a filmar a situação dramática dos refugiados africanos – ou seja, daqueles que conseguiam chegar vivos à Itália. De volta à Guiné, Cissoko exibe os vídeos a sua gente com a dupla intenção de alertá-los para ilusão do “sonho europeu” e exortar as autoridades de seu país a investir na fixação do povo, sobretudo pela valorização dos jovens. O passado histórico não escapa à percepção do rapaz. Enquanto no passado os escravos foram forçados a seguir para a Europa e tantos negros já combateram em guerras ao lado dos europeus, hoje os africanos são repudiados em nome da crise econômica. Em seu périplo junto com uma artista-ativista italiana, Cissoko vem a Pernambuco para colher o exemplo de um quilombo que resistiu e progrediu como comunidade. Vários aspectos da condição dos refugiados são abordados, ainda que numa narrativa um tanto errática. Mas o que incomoda de fato é que o humanista Cissoko, autor de todo o material principal e condutor das ideias ao longo do filme, aparece apenas como personagem e corroteirista. A assinatura de Cristina Mantis, atriz e documentarista italiana, sugere mais uma apropriação que uma parceria.
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