Publicado em 13/10/2024


Selton Mello em Enterre Seus Mortos, de Marco Dutra

Por Rodrigo Torres

No Natal de 2019, Rodrigo Teixeira viajava sozinho para Nova York, sem os filhos, e enfrentava um duro processo de separação quando leu Enterre Seus Mortos (2018). Considerada “uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporânea”, a autora Ana Paula Maia reúne novela policial, faroeste de horror e romance filosófico com habilidade e potência nessa obra, muito elogiada pela crítica literária. Impactado pela leitura, o produtor desceu do avião decidido: “Eu tenho que oferecer esse livro pro Marco Dutra!”

Cinco anos depois, Enterre Seus Ossos é exibido pela primeira vez no país como filme de encerramento da Première Brasil do Festival do Rio 2024, reunindo parte fundamental da equipe, mas sem Marco Dutra. Horas antes, foi a vez de o diretor pegar um voo, dessa vez para Londres, para representar seu filme no BFI London Film Festival 2024. Coube a Rodrigo Teixeira dar sua versão dos fatos e explicar como o cineasta e parceiro de longa data chegou àquela interpretação alucinante e altamente cinematográfica do romance de Ana Paula Maia.


Enterre Seus Mortos, de Marco Dutra

“Quando cheguei ao hotel, dia 26 de dezembro, eu estava tão ansioso que falei para ele: ‘Cara, compra um livro imediatamente, eu quero que você leia hoje!’, e o Marco falou: ‘Rodrigo, é Natal, não vou ler’. Mas eu insisti: ‘Se você ler e gostar do livro, o filme é seu’. Não deu três dias, ele me falou: ‘Eu adorei! Estou cheio de ideias! Que personagem maravilhoso’”, diz o produtor, lembrando que Marco Dutra foi um dos primeiros casos de covid-19 no Brasil e, nesse período difícil de recuperação física, “se apegou ao projeto como uma boia de sobrevivência”.

Adaptação x Original

Aos fãs do livro e do seu protagonista, interpretado pelo grande Selton Mello, a escritora Ana Paula Maia alerta: “O filme é do Marco”. E ela se mostra muito bem resolvida com isso. “Eu acredito que, quando a gente vende um livro, a gente tem que desapegar. Aquele ali não é o Edgar Wilson das páginas, que é um fã de Braddock 3 - O Resgate (1988), um Edgar que resolve problemas, que não se apaixona… o Edgar do filme é uma releitura”, explica Ana Paula, que percebe no longa-metragem a assinatura e as influências próprias do Marco. “O livro é uma outra coisa”.


Debate de Enterre Seus Mortos encerra a Première Brasil 2024 - Foto: Rodrigo Torres

Para falar das referências de Marco Dutra, ninguém melhor que o cineasta capixaba Caetano Gotardo, que coassina o roteiro de Enterre Seus Mortos. “O Marco tem uma relação muito forte com o cinema de gênero desde a infância. A Juliana Rojas, que é nossa grande amiga e parceira do Marco em tantos filmes, também. Eu, não. Eles que me fizeram olhar para o cinema de gênero de outra maneira. E isso é algo que permeia as nossas conversas — para mim, como aprendizado, como um modo de abrir o olhar — é uma das coisas mais bonitas nas relações criativas”, diz Caetano, refletindo sobre o processo entre eles antes de dizer efetivamente como o colega Marco Dutra articula o cinema de gênero em sua obra.

Hiperexpressão da realidade

“Eu não posso falar pelo Marco totalmente, mas acho que ele tem esse prazer pelo gênero desde a infância. Pelo que o gênero causa, pelo encantamento, por uma coisa lúdica, perturbadora, pelo jogo que o gênero permite… Então, existe um interesse no gênero pelo gênero. Mas acho que, a partir de sua vivência como espectador e, depois, como realizador, o gênero foi ocupando o lugar também de um campo muito fértil para pensar nas coisas mais concretas e, também, mais transcendentais e mais complexas da vida”, diz Caetano.


Selton Mello e Danilo Grangheia em Enterre Seus Mortos, de Marco Dutra

“Então, eu acho que é um jogo entre essas duas coisas: o prazer puro e simples de lidar com as ferramentas do gênero, o encantamento, e lidar com a possibilidade metafórica, transcendente, que o gênero joga para o mundo — sempre numa relação com coisas muito difíceis de expressar da nossa experiência real e que o gênero permite expressar por outros caminhos que, às vezes, abandonam a razão”, diz o roteirista, parceiro de Marco Dutra nos filmes Todos os Mortos (2020) e O Silêncio do Céu (2016).

A importância do Festival do Rio

Rodrigo Teixeira aproveitou a deixa para a agradecer à Globoplay por acreditar no projeto e topar lançá-lo nos cinemas como primeira janela, antes de levar para a sua plataforma de streaming, citando a importância de todos apoiarem filmes de terror e ficção científica — que costumam encontrar dificuldades específicas de financiamento. Segundo o produtor, o Festival do Rio presta um serviço fundamental não apenas para o cinema de gênero, como para o cinema como um todo.


Betty Faria em Enterre Seus Mortos, de Marco Dutra

“Eu acho que, se a gente não tiver os festivais, a gente não vai mais trazer o público. Eu acho que o público está muito longe do cinema”, disse Rodrigo, preocupado com a quantidade de distrações que temos à disposição hoje. “Independente de você gostar do filme ou não, hoje mesmo eu vi mais de uma pessoa usando o Instagram durante a sessão. É um vício mesmo”, disse ele, concluindo que o festival é fundamental para “manter o cinema vivo no Rio de Janeiro”.

“O Festival do Rio é muito mais necessário agora do que era há 10 anos”, disse Rodrigo Teixeira, fechando com chave de ouro a Première Brasil do Festival do Rio 2024 — mediada pelo nosso decano da crítica de cinema brasileira, Luiz Carlos Merten, que se disse “muito honrado” em abrir os trabalhos no sábado anterior, com o filme Os Enforcados, e encerrar com essa sessão marcante de Enterre seus Mortos. Ele merece!

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