Avenida Beira-Mar: Niterói bucólica dá espaço para brincadeira de criança e questões adultas Diretores Maju de Paiva e Bernardo Florim trazem abordagem ampla sobre o universo de ser uma garota, cis ou trans, em parte crucial da trajetória. Longa conta com Andréa Beltrão tem como pano de fundo noções de presença e ausência.
Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim
Por Laís Malek
A distância da casa de Rebeca e Marta para a praia de Piratininga, em Niterói, é atravessada em alguns passos — ou em poucas voltas de patins. Em Avenida Beira-Mar, no entanto, o trajeto ganha maior amplitude ao ser povoado por diferentes questionamentos. O filme de Maju de Paiva e Bernardo Florim, exibido no domingo (6) no Estação Net Botafogo, seguido de sessão de debate na mostra Première Brasil: Competição Novos Rumos do Festival do Rio aborda diferentes questões específicas, mas universais, ao retratar a relação entre as três personagens principais.
Quem completa a tríade e interage com as personagens de Milena Pinheiro e Andrea Beltrão é Mika (vivida por Milena Gerassi). A narrativa é conduzida por Rebeca, uma adolescente de 13 anos que se muda com a mãe para uma casa nova e precisa navegar mais essa mudança em meio ao já complicado turbilhão de emoções adolescentes. Solitária, ela olha através do muro de casa uma outra menina que mora na rua e passeia livremente de patins.
Depois de um primeiro encontro que começa em briga, as duas desenvolvem uma amizade, e a jornada de descoberta se aprofunda quando Mika sofre violência de dois meninos mais velhos, e Rebeca a defende. A partir daí, ela descobre que a amiga é diferente dela, embora nenhuma das duas seja capaz de verbalizar — talvez pelo contexto em que estão inseridas, em uma era pré-celular e consequentemente menos acesso à informação — a palavra trans. Mika afirma que é uma menina, fato que a amiga aceita sem questionar.
Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim
Subvertendo uma lógica comum em filmes sobre pessoas trans, o filme apresenta Mika de cara performando feminilidade como forma de expressão de gênero. É só na metade do longa que o público a vê com roupas tipicamente de meninos adolescentes, quando ela troca suas roupas — que pega emprestado da irmã que não mora mais com a família —por peças largas, tênis e boné, escondendo os cabelos longos e as unhas do pé pintadas. Dentro de casa, Mika precisa fingir que é João Pedro, e mesmo que desafie os pais ao passar batom na mesa de jantar, sua mãe tira a maquiagem à força enquanto o pai fecha a porta. A ameaça de cortarem seu cabelo contra sua vontade paira como uma nuvem escura no horizonte.
No debate, a diretora e roteirista Maju de Paiva contou mais sobre essa escolha narrativa. “A gente queria fazer um filme sobre essas relações, e não colocar nenhum personagem em uma caixa e estereotipar, porque é isso que a gente mais vê. Especialmente em filmes de coming of age, personagens sendo reduzidos a uma coisa só e completamente unilaterais. Queríamos trazer uma dimensão maior. Pessoas são pessoas, elas têm coisas boas e coisas ruins, e queríamos mostrar o caminho agridoce da infância, trazer outros lados, falar de maternidade de certa forma”, explica.
Bernardo Florim também falou sobre a maneira de retratar Mika em cena. “A gente tentou justamente naturalizar isso. Vemos muitos filmes em que a jornada de uma pessoa trans é um calvário, e nós queremos que as pessoas gostem do filme, inclusive pessoas trans. A gente queria mostrar a beleza, a alegria, a amizade e a brincadeira delas. Quando a gente faz essa escolha, talvez tenha gente que só descubra na cena do jantar que essa é a questão posta. Aí, essa pessoa já está conquistada pela personagem. Quando você conhece as emoções da personagem sem ver uma bandeira, as suas barreiras afrouxam. A gente queria tirar esse primeiro véu e mostrar ela como um ser humano, vivendo as experiências que todo mundo vive”, analisa.
Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim
Ao longo do filme, algumas questões são respondidas, enquanto outras novas surgem e ficam sem respostas. As personagens também passeiam por lugares vazios: a piscina onde Mika e Rebeca brincam como se estivessem nadando, a boate abandonada onde Mika guarda objetos especiais e faz uma emocionante apresentação ao som de Dê um rolê, na voz de Gal Costa, a praia deserta no inverno.
A trama termina com um final em aberto: quando seus pais a obrigam a cortar o cabelo bem curto, Mika foge de casa e se esconde na casa da amiga, morando em uma casinha ao lado da piscina. Rebeca a encontra e a abriga escondida da mãe, mas quando Marta descobre e cogita levá-la de volta à casa dos pais, Mika decide ir atrás da irmã mais velha.
Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim
Para Maju, a história reside na busca por preencher essas lacunas deixadas pelo contexto dos personagens. “O filme é sobre encontrar um pertencimento, preencher espaços vazios, sobre essas famílias não tradicionais que a gente encontra no caminho. Esses lugares estão sendo ocupados por elas. A gente pensou no filme no viés de ocupar esses lugares que estavam vazios e abandonados”, afirma.
Bernardo complementa: “Esse pertencimento está nas pessoas. Você pode adicionar sentimentos, emoções e memórias afetivas aos espaços, mas o pertencimento vem das pessoas com quem você estava.”
Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim
Para as jovens atrizes, que trazem impressionante profundidade e nuance às personagens apesar da idade, o ponto-chave do longa é a amizade entre as garotas. “Acho que o filme está aí pra mostrar que elas são crianças. Elas estão no processo de encontrar quem são na vida, encontrar quem elas amam, quem elas veem como abrigo. E buscarem elas mesmas preencher essas lacunas”, opina Milena Gerassi. “Acho muito bonita a forma como Rebeca e Mika se completam. Elas são muito diferentes e se encontraram nessa amizade. Antes de conhecer a Mika, a Rebeca era muito fechada na forma como ela fala e age, então isso foi muito bonito”, complementa Milena Pinheiro.
Assim como Mika, Milena Gerassi também passou pelo processo de transição na infância, mas ao contrário da personagem, foi apoiada pela família. Ela fala mais sobre a importância de aceitar fazer esse papel. “Graças a tudo que tem nesse universo, eu não passei o que ela passou. Tive ajuda dos meus pais, o apoio da minha família, se não eu não estaria aqui. Receber a Mika foi uma oportunidade como atriz de me sentir como ela se sentiu. Violada, infelizmente sozinha, e tentando se redescobrir”, relata.
Debate de Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim - Foto: Laís Malek
Para Andrea Beltrão, mais importante do que a mensagem do filme é a maneira como ele é contado. “Não adianta você ter uma mensagem muito forte e o filme ser ruim, chato, ter um desenvolvimento massante. Às vezes, por excesso de tesão de colocar uma mensagem, que é muito importante, você acaba pesando a mão. Como atriz, o que mais me impressionou foi o roteiro, como eles colocaram essa história no papel. É pelo olhar deles que a história fica interessante. Se não, seria só mais um filme que fala sobre os nossos preconceitos, e o trabalho brilhante da Maju e do Bernardo e de toda a equipe e elenco foi de tocar nesses preconceitos de uma maneira interessante”, opina.
O debate foi encerrado com uma homenagem a Emiliano Queiroz, ator falecido na última sexta-feira (4) e que teve uma participação emocionante no filme. O longa foi seu último trabalho, aos 88 anos, e todos os presentes bateram palmas para prestar respeito ao ator.
Avenida Beira-Mar, de Maju de Paiva e Bernardo Florim
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