Publicado em 12/10/2024


Alma Negra, do Quilombo ao Baile, de Flavio Frederico

Alma Negra, do Quilombo ao Baile é um belo exemplo de como o brasileiro é forjado na luta. Em um primeiro plano, mais evidente, pela temática do documentário, que faz um mergulho profundo no universo afrobrasileiro por meio da soul music, retratando desde o surgimento do gênero, no final dos anos 1960, até seu ápice, com os famosos bailes black no Rio de Janeiro e em São Paulo.

“Primeiramente, eu gostaria de elogiar a direção e os produtores, por esse documentário de muita qualidade, que me emocionou profundamente, tanto pelo fato de eu ter feito parte dessa história, como também pelos personagens que o filme apresenta e com os quais eu tive a oportunidade de conviver, como Maria Beatriz Nascimento, Lélia González, Hamilton Cardoso e tantos outros”, diz o Professor Doutor Carlos Alberto de Medeiros no debate do filme, que concorre na seleção oficial de longas documentais do Festival do Rio 2024.


Alma Negra, do Quilombo ao Baile, de Flavio Frederico

Grande intelectual sobre a cultura negra nos Estados Unidos e no Brasil, o Professor Medeiros contextualiza o recorte histórico de Alma Negra: “O Movimento Black foi um marco fundamental para a afirmação de uma identidade positiva que nós não tínhamos até aquele momento. Como a Zezé Motta destaca, nós éramos ensinados, pela escola, pela mídia e pela própria família, que nós éramos feios, que a cor da nossa pele e os nossos narizes largos eram feios, que o nosso cabelo não era bom… Por isso eu digo que o pior efeito do racismo sobre a população negra foi sobre a nossa autoestima”, diz o professor, com uma inteligência e retórica que captura a nossa atenção.

“Se a pessoa acredita que é inferior, ela vai se mostrar inferior, ela vai se considerar menos capaz, até intelectualmente, e vai ocupar aquele lugar que disseram que é o dela”, argumenta Medeiros, explicando que os movimentos black começam a desconstruir isso com mais força no Brasil a partir das década de 1970. “Como um dos entrevistados diz, o Brasil está mudando. A gente vê isso nos telejornais, na comunicação, nas telenovelas… E, nesse sentido, o movimento black foi fundamental — fundamental!” 


Debate do filme Alma Negra, do Quilombo ao Baile, de Flavio Frederico — Foto: Rodrigo Torres

Além desse resgate importante de um discurso que deve ser sempre reforçado, o segundo exemplo do esforço inesgotável do povo e do cinema brasileiro é a realização do filme em si, após 10 anos de produção e um atraso de 2 anos durante o Governo Bolsonaro. Com isso, Alma Negra foi finalizado às pressas para ficar pronto a tempo de participar do Festival do Rio 2024 — o que é incrível, pois o terceiro reflexo dessa capacidade que nós temos de nos superar é o resultado final do filme, com seu acervo de imagens, sua fotografia, sua trilha sonora e sua mixagem de som em forma espetacular.

Essa experiência cinematográfica incrível é veículo para o diretor Flavio Frederico e a roteirista Mariana Pamplona comunicarem, com máximo poder de engajamento do público, essa narrativa brasileira que é fundamental para o futuro do país. "O BiD, que é produtor musical e nosso parceiro em muitos projetos, falou: 'Olha esses caras, eles estão maravilhosos e estão meio esquecidos. Você precisa fazer um filme sobre esses caras", disse o diretor Flávio Frederico.


Alma Negra, do Quilombo ao Baile, de Flavio Frederico

Eduardo Bidlovski, o BiD, tocou com o Supla na banda Tokyo, produziu o álbum Afrociberdelia, do Chico Science e Nação Zumbi, e cuidou do som cheio de texturas de Alma Negra. Mas, o que mais chamou atenção em seu discurso ao longo do debate foi a preocupação com aqueles personagens lendários, históricos, retratados no documentário e que tanto não receberam o devido crédito ao longo de sua trajetória, como, alguns, nem puderam vê-la recontada com um novo olhar na Première Brasil do Festival do Rio 2024.

"Esse filme me emocionou muito. Como um homem branco, isso me pega ainda mais profundamente, talvez pela ligação musical que eu tenho com a música negra", conta BiD, que teve trabalhos recentes com os amigos Seu Jorge e Gabriel Moura. "A maior sacada desse filme é o encontro do quilombo com o baile. Esses são os dois lugares em que os negros se sentiam parte e podiam ser como eram de verdade. Eu espero que esse documentário possa ensinar, chegue nas escolas, chegue para as pessoas do rap... porque a situação não está tão melhor. Vem melhorando, mas ainda precisa melhorar muito para acabar com essa situação ridícula no país", disse BiD, referindo-se ao racismo, e lamentando: "Pena que muitos morreram antes de ver o filme pronto".


Alma Negra, do Quilombo ao Baile, de Flavio Frederico

"Eu e Flávio trabalhamos no roteiro e também muito na ilha de edição, para o filme fazer sentido, contar uma história", diz Mariana, passando mentalmente pela construção do documentário ao longo dos anos. "Eu lembro que eu fui muito insistente que a gente precisava contar a história da luta antirracista. Eu, como branca, só posso dizer que aprendi muito, muito, muito estudando e trabalhando nesse filme. Aprendi muito mais do que eu imaginava".

"Eu vejo que a dívida histórica que o branco tem com o negro é gigantesca. Precisa, sim, ter reparação. E outra coisa importante: o negro não precisa de aula antirracista, pois ele já sente na pele. Nós que precisamos estudar mais e aprender", diz Mariana, completando seu discurso com uma frase impactante que deveria ser trivial, e o sentimento de toda pessoa de bom senso: "Eu, como mulher branca, sinto muita vergonha".

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