Deixando-se levar pela correnteza Carlos Alberto Mattos comenta O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues
Por Carlos Alberto Mattos
Junto a Pedro Costa e Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues compõe a trinca de ouro do cinema de invenção português contemporâneo. Seu último filme, que passa hoje (segunda, 17h no Roxy) na “última chance” do festival, é mais uma fábula ao mesmo tempo delirante e provida de uma surpreendente coerência. O personagem-título de O ORNITÓLOGO está observando cegonhas negras num rio do norte de Portugal quando se distrai e se deixa levar por uma correnteza. Desacordado, é socorrido por duas turistas chinesas católicas que fazem o Caminho de Santiago. A partir daí, o percurso de Fernando será uma paródia surrealista da peregrinação de Santo Antonio de Pádua, também conhecido como Santo Antonio de Lisboa e cujo nome de batismo era justamente Fernando.
O ORNITÓLOGO está para uma hagiografia tradicional como Buñuel estaria para um chá da Academia Brasileira de Letras. Buñuel e seu O Estranho Caminho de Santiago, aliás, são uma referência incontornável. Fernando vai se confrontar com experiências inusitadas nas áreas do sadismo, do homoerotismo, da alucinação, da ressurreição e da iluminação espiritual. Vai cruzar com amazonas, espíritos fantasiados, uma floresta povoada por animais empalhados, o Espírito Santo em forma de pomba branca e a sabedoria encarnada em corujas. Vai também compartilhar signos de outros santos, como a caveira de São Jerônimo, os pássaros de São Francisco de Assis, o suplício de São Sebastião e os escritos na areia de Anchieta. Os personagens se expressam às vezes em latim, outras em mirandês, um dialeto regional português. A época da história, embora atual, flerta com outros períodos indefinidos, num tempo mítico que coloca o Portugal religioso e medieval em contato com os elementos da modernidade.
A Natureza prevalece sobre tudo com sua sensualidade e exuberância audiovisual. O olhar curioso do ornitólogo é correspondido pelas aves em tomadas aéreas lindíssimas ou em aproximações intimistas de espécimes em ação. Imprevisível e intrigante a todo momento, hilariante em muitos deles, o filme tem a assinatura bizarra mas sedutora do diretor de O Fantasma e Morrer como Homem. A maneira como João Pedro faz confundir as suas próprias feições com a do protagonista (Paul Hamy) pode ser vista apenas como uma charada a mais (Esse Obscuro Objeto do Desejo?) ou, quem sabe, como uma exótica forma de devoção a Santo Antonio.
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