Da destituição absoluta ao pensamento delirante Carlos Alberto Mattos comenta Talvez Deserto, Talvez Universo, de Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman
Por Carlos Alberto Mattos
O documentário de observação só se aproxima da não interferência ideal quando filma loucos, cegos ou pessoas sem nenhuma ideia do que seja o cinema. TALVEZ DESERTO, TALVEZ UNIVERSO chega perto disso ao documentar o cotidiano dos internos num hospital psiquiátrico forense de Lisboa. Ali estão 32 homens diagnosticados com esquizofrenia ou bipolaridade, culpados por delitos que vão desde sair nus na rua até cometer assassinatos. A não ser por três entrevistas – duas das quais logo se transformam em monólogos -, o diretor Miguel Seabra Lopes limitou-se a fixar sua câmera diante das rotinas dos internos: as deambulações, cortes de cabelo, afazeres e conversas maquínicas e obsessivas. Um senhor que pede insistentemente moedas a todos, outro que se volta para a câmera a fim de se defender da acusação de assassinato, um imigrante africano brincalhão que pede a mão de um colega em casamento. As ações, porém, são relativamente poucas. Na maior parte do tempo, a câmera apenas procura sincronizar-se com o ritmo daquelas pessoas nos planos fixos, captar o tempo da introspecção ou do inesperado, o vazio dos olhares.
Miguel assina o filme com sua mulher e parceira, a montadora Karen Akerman. Ela construiu uma estrutura que privilegia os tempos distendidos e não funcionais, assim como a ausência de continuidade. Uma estrutura que evidencia a desarticulação do pensamento racional. Não há a busca da crueza, como no clássico Titicut Follies, de Frederick Wiseman, ou no doc-denúncia Em Nome da Razão, de Helvécio Ratton, com os quais possui parentesco (até pelo uso do preto e branco). Ao contrário, Miguel e Karen se interessam por revelar pequenos gestos de humanidade, manifestações de afeto e até um certo nível de aceitação de alguns personagens quanto a sua condição. Escritos e até reflexões metafísicas são rapidamente expostos como uma breve alusão ao mundo interior, não manifesto, que palpita por trás das máscaras enquadradas pela câmera. O título do filme vem de um verso do roqueiro português Pedro Abrunhosa, admirado por um paciente dotado de pensamento crítico-político. A frase, então, ganha um sentido inesperado. É que da absoluta destituição (o deserto) ao pensamento mais delirante (o universo), existe um “talvez” que a loucura nos coloca como desafio.
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