Até que a Música Pare: drama familiar ajuda a manter viva língua própria falada por descendentes de italianos Filme é dirigido por Cristiane Oliveira, que falou sobre o longa-metragem que compete na Première Brasil em debate com o público no Cine Odeon - CCLSR no último sábado (14/10).
Emoldurado pela paisagem interiorana da Serra Gaúcha, o drama Até Que a Música Pare explora de forma delicada questões como luto, tradição, diversidade religiosa e o impacto da polarização política na vida cotidiana das famílias. Os diálogos são em italian, idioma de características próprias preservado pelos descendentes de imigrantes italianos que se instalaram na região no final do século XIX.
Exibido no Cine Odeon na tarde de sábado (14/10), em sessão acompanhada de debate, o longa que compete na Première Brasil foi inspirado pelo relato de uma situação que ocorreu na família de uma amiga da diretora Cristiane Oliveira, que também assina o roteiro da produção. “É uma história sobre ética nas relações”, comentou a cineasta, que chega ao seu terceiro longa-metragem neste projeto. Os anteriores foram Mulher do Pai, vencedor do Prêmio de Melhor Direção no Festival do Rio, e A Primeira Morte de Joana (2021).
O enredo acompanha uma matriarca que reavalia sua relação com seu marido em uma fase delicada da dinâmica familiar. O último filho que ainda morava com os pais saiu de casa em um momento em que a família ainda processa a morte de outro filho, que estava brigado com o pai quando foi vítima de um acidente automobilístico. Chiara, a matriarca interpretada por Cibele Tedesco, enfrenta um momento de solidão e decide acompanhar o marido, Alfredo (Hugo Lorensatti) pelas viagens que faz pela região da Serra Gaúcha vendendo mercadorias, experiência que coloca em perspectiva 50 anos de casamento.
“Esse filme dialoga muito com essa dor, com essa escalada de discursos de ódio que fez com que muitas famílias tivessem fissuras, como um vidro que trinca e não se cola mais”, avalia Oliveira. “É uma dor que permeou todo o nosso processo. Qual o limite da nossa tolerância? É uma pergunta difícil de responder. Quais são as palavras que fazem a gente desistir de quem amamos?”
Para encontrar um elenco fluente em talian, Cristiane Oliveira convidou atores do grupo de teatro Miseri Coloni, de Caxias do Sul (RS), que atua há 40 anos promovendo o idioma em suas montagens. O contato com o elenco, conta a diretora, fez com que os atores trouxessem contribuições de suas vivências para a história. “Não dei o roteiro para eles de cara. A gente foi conversando sobre as situações primeiro ao longo de seis meses de trabalho. Dessas conversas, eles, muito generosamente, aceitaram que algumas histórias próprias deles viessem para o filme.”
A cineasta recordou que o taliam, hoje reconhecido como Referência Cultural Brasileira pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) já sofreu tentativas de apagamento e estigmatização no século XX e que propor a valorização dessa tradição foi um compromisso do filme. Durante as filmagens, a produção contou com uma especialista em taliam acompanhando o dia-a-dia das gravações para garantir que as pronúncias dos diálogos trouxessem as características singulares do idioma que as distinguem do italiano tradicional.
“Existia um certo tabu e vergonha ao se manifestar publicamente neste linguajar porque ele era considerado uma linguagem de classe baixa”, comentou Hugo Lorensatti, que também falou um pouco da origem da companhia de teatro Miseri Coloni, do qual faz parte. “Em virtude disso, muitos componentes do grupo que cresceram falando o taliam entraram na luta para desmistificar e quebrar esse tabu para nos orgulhamos daquilo que é nossa cultura.”
Ao tomar a palavra no debate, Cibele Tedesco se disse feliz por apresentar Até Que a Música Pare no Rio de Janeiro para um público que pode ter escutado o idioma talian pela primeira vez ao assistir ao filme. Ela, que é cantora e professora de música e estreou como atriz de cinema no projeto, disse que se inspirou em mulheres de sua família para compor sua personagem.
“A gente vê na Chiara uma ingenuidade dessa mulher que ficou muito tempo fazendo as coisas que a mulher deveria fazer, no papel de mãe, de agricultora, de esposa. Ela comanda a casa, sendo comandada pelo marido de alguma forma. Filme mostra essa mudança que ela teve. Me lembro da minha avó, das irmãs da minha avó. Me aproveitei disso e usei minha atuação como uma homenagem a essas mulheres que ainda existem”, disse, antes de completar: “Que bom que a Chiara de alguma forma acordou.”
Texto: João Vitor Figueira
Foto: Ian Melo
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