Publicado em 11/10/2024


Petra Costa apresenta Apocalipse nos Trópicos no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Kayane Dias

Por João Vitor Figueira

Elena (2012) e O Olmo e a Gaivota (2015), primeiros longas-metragens de Petra Costa, posicionaram a realizadora como uma voz relevante do cinema documental brasileiro, muito em função de sua assinatura autoral, intimista e autobiográfica. 

Entretanto, a grande tribulação que se tornou a vida política brasileira na última década fez com que uma trombeta soasse, alterando o tino das investigações artísticas que movem o cinema da realizadora. Para seu mais recente projeto, a diretora, filha de militantes de esquerda criada em um ambiente laico, precisou estudar a Bíblia para embasar sua investigação da influência evangélica na política brasileira.

“Eu não tinha o desejo de falar de grandes temas, mas ali por 2015 ou 2016, me senti afetada pelos acontecimentos”, assumiu a cineasta, que exibe no 26º Festival do Rio seu mais recente projeto, Apocalipse nos Trópicos, uma espécie de sequência espiritual de Democracia em Vertigem (2019), filme indicado ao Oscar de melhor documentário que explorou o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão da extrema-direita no Brasil.


Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa

A diretora esteve, ao lado da equipe do filme e de sua filha pequena, no Cine Odeon - CCLSR para um bate-papo com o público após uma sessão de Apocalipse nos Trópicos. O filme, que estreou mundialmente no Festival de Veneza e tem Brad Pitt como produtor executivo, integra a competição principal da Première Brasil, onde Petra já foi premiada com o curta-metragem Olhos de Ressaca (2009) e com o longa O Olmo e a Gaivota.

Com acesso privilegiado a figuras como o Lula, Jair Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia, o documentário é fruto de “quatro anos de trabalho árduo”, como definiu a diretora, mas o projeto não nasceu visando investigar a ameaça à separação entre igreja e Estado no país. No país em que o flerte de figuras públicas conservadoras com uma teocracia evangélica causa vertigem em quem defende valores democráticos, Petra disse que o projeto começou na pandemia, fruto de um desejo dela de retratar a crise sanitária “como uma forma de sobrevivência”.

Debate sobre Apocalipse nos Trópicos realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Kayane Dias
Debate sobre Apocalipse nos Trópicos realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Kayane Dias

Nas filmagens em Paraisópolis, periferia da cidade de São Paulo, Petra notou as luzes e sombras da atuação de igrejas evangélicas na pandemia. Por um lado, alguns pastores exercitavam a solidariedade e serviam de “base de apoio sanitário, psicológico e espiritual” para os fiéis desassistidos pelo Estado. Entretanto, muitos outros tinham uma postura negacionista. 

Ao notar que um desses pastores que se recusava a fechar sua igreja durante a época em que o isolamento social era necessário para preservar vidas era influenciado pelo influente líder evangélico Silas Malafaia, Petra entendeu que o filme precisava tomar outra direção. “Eu tinha tantas dúvidas e tantas curiosidades sobre como esse movimento cresce tão rápido e como essa fé começa a tomar uma força política tão grande”, conta a cineasta, que no filme destaca que evangélicos representavam 6% da população brasileira na década de 1980 e hoje já são quase um terço dos habitantes do país.

Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa
Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa

Chama a atenção que uma figura tão associada à extrema-direita brasileira, ao conservadorismo e ao fundamentalismo religioso como Malafaia tenha recebido em sua própria residência, ao lado de sua família, uma equipe de filmagem liderada por uma diretora assumidamente progressista e de esquerda. 

Petra destaca que o religioso “nunca quis saber” como seria o filme e “queria mesmo falar para a câmera”. O pastor, que ganhou força nas igrejas como televangelista e alcançou projeção nacional como figura midiática, se interessou “visibilidade que o filme teria fora do Brasil”, disse a cineasta. 

Quem fez a ponte entre a realizadora e Malafaia foi a jornalista Anna Virginia Balloussier, repórter da Folha de S. Paulo que acompanha a pauta evangélica há quase 15 anos e é autora de um livro sobre o tema. Foi a jornalista quem conduziu as primeiras entrevistas com o ministro religioso.


Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa

Malafaia é uma figura central no filme. Os registros de sua intimidade revelam que ele mantém o tom inflamado mesmo quando está em casa, exibem os frutos que a disseminação da teologia da prosperidade trouxeram para o pregador (carro de luxo, joias) e mostram que suas frases grandiloquentes sobre seu próprio poder de influência se comprovam na postura de marionetista que o religioso assume ao redor do então presidente Jair Bolsonaro e do deputado Sóstenes Cavalcante, que foi líder da bancada evangélica no Congresso.

“O que me impressiona muito na retórica do Malafaia é que é uma retórica essencialmente profana. Essencialmente sobre coisas materiais”, contou o diretor de fotografia Pedro Urano, que foi quem registrou, sozinho, a cena favorita de Petra em Apocalipse nos Trópicos. No trecho em questão, Malafaia está dirigindo um carro de luxo em uma via expressa acompanhado da esposa e fica enraivecido com um motociclista que o ultrapassa. Na mesma conversa, o pastor defende que Jesus também tem seus momentos explosivos, citando a passagem bíblica sobre a expulsão, a chicotadas, dos vendilhões do templo.


Debate sobre Apocalipse nos Trópicos realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Kayane Dias

Petra conta que estruturou o filme, que é pautado pela exposição de suas próprias ideias sobre o tema narradas em off, em três frentes, “uma camada no cinema direto, outra com as pinturas e reflexões teológicas apocalípticas e a outra que traz Brasília enquanto símbolo do Brasil”, conta. As considerações religiosas de Petra são feitas enquanto a diretora apresenta detalhes dos tormentos infernais apresentados nos quadros de pintores como Hieronymus Bosch.

A camada do cinema direto apresenta o verdadeiro Armagedom que se tornou a polarização política brasileira, com registros fortes com pessoas anônimas, incluindo uma entrevista com uma fiel evangélica humilde que admira Lula mas votará em Bolsonaro por influência da igreja e de uma mulher bolsonarista que brada, exultante, dizendo que “a ditadura voltou!” após o resultado final das eleições presidenciais de 2018.

Nas reflexões teológicas, Petra investiga as diferentes interpretações cristãs para o livro de Apocalipse, citando que algumas delas podem ter sido o combustível transcendental que impulsiona o sentimento de viés revolucionário da direita brasileira que resultou em atos como os ataques de 8 de janeiro em Brasília. “Sinto que a esquerda parou de sonhar o futuro e virou uma gerente das crises do capitalismo, uma força conservadora, por querer conservar o status quo”, comentou a diretora.

Debate sobre Apocalipse nos Trópicos realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Kayane Dias
Debate sobre Apocalipse nos Trópicos realizado no Cine Odeon - CCLSR - Foto: Kayane Dias

Além disso, a cineasta também aborda a chamada Teologia do Domínio, projeto de poder evangélico que a instigou por ser muito menos comentado do que a Teologia da Prosperidade, por exemplo, mas por fazer a população “viver as consequências disso sem necessariamente saber” que essa visão existe.

Durante o debate, Petra Costa avaliou que em sua pesquisa teológica se deparou com uma interpretação do livro de Apocalipse feita pelo padre Júlio Lancellotti que lhe pareceu “muito mais libertadora” do que a tendência que projeta o fim do mundo como uma guerra cósmica do bem contra o mal. “Para ele, a figura da mulher grávida perseguida pelo dragão é muito forte”, recorda a diretora. “Ela está grávida do futuro e o dragão é essa força conservadora que quer matar o futuro. Ela sobrevive ao dragão em sua pequenez e na sua potência, que é estar grávida do futuro.”

Na conversa com o público, a diretora que mudará de ares no trabalho posterior a Apocalipse nos Trópicos, deixando de lado a exploração do cenário político nacional. “Eu não quero mais [...] Meu próximo filme vai ser um documentário híbrido western”, contou. Ao responder uma pergunta da plateia, a cineasta também mencionou suas principais referências no cinema, citando Chris Marker como sua “maior inspiração em termos de cinema de ensaio”, além da obra de figuras como Eduardo Coutinho e João Moreira Salles e de escritoras como Annie Ernaux e Marguerite Duras.

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