Publicado em 13/10/2024

A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha 

Por João Vitor Figueira

Exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes deste ano, o documentário A Queda do Céu chamou a atenção internacional para a luta indígena pela preservação de suas terras e seus modos de vida. Na imprensa estrangeira, a obra chegou a ser classificada como “uma das peças mais necessárias e impactantes de narrativa não ficcional dos tempos recentes” pela revista Variety, contando com 100% de aprovação no site agregador de críticas Rotten Tomatoes.

Com direção de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, o longa-metragem chega ao Festival do Rio na competição principal da Première Brasil reforçando como a contundência da cosmologia yanomami, bem como a relação dos povos indígenas com o território e a natureza, podem servir como uma luz (e um aviso profético) para um planeta em transe por conta das mudanças climáticas.

A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha

O filme também chega com uma missão maior do que ser apreciado por seus valores estéticos ou elogiado pela crítica e público. A Queda do Céu é um chamado a um engajamento ativo da plateia. “Vocês serão os nossos aliados aqui na terra dos meus netos? Vão protegê-los? Vão dizer aos brancos que parem de destruir a Terra-Floresta e nos matar?”, expressa uma das lideranças indígenas no filme, último documentário da competição principal do Festival do Rio a ser exibido nas sessões especiais do programa Première Brasil Debates no último sábado (12).

Gabriela Carneiro da Cunha, codiretora do longa-metragem ao lado de Eryk Rocha, explica que uma das principais missões do filme é instigar os não-indígenas a adotarem uma postura ativa diante das injustiças cometidas contra os povos originários. O filme é baseado no livro homônimo, escrito pelo líder yanomami Davi Kopenawa, que expõe seu pensamento diante das câmeras, em colaboração com o antropólogo francês Bruce Albert.

A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha

Fruto de sete anos de trabalho, Eryk e Gabriela trabalharam com uma equipe que contou com pessoas indígenas, além de terem fornecido equipamentos de filmagem para comunicadores yanomami e realizado oficinas, além de terem trabalhado com a Associação Hutukara Yanomami para criar um banco de imagens sobre este povo originário com mais de 30 horas.

A Queda do Céu tem, então, essa natureza dupla: é um veículo para que outras audiências conheçam a cultura de um povo, mas também uma ferramenta para que os yanomami se comuniquem com o “povo da mercadoria” e com os napë (brancos). 

Os yanomami viveram isolados por muito tempo, situados na fronteira do Brasil com a Venezuela, mas a partir da década de 1940 o contato com não indígenas se tornou mais frequente. Durante a ditadura militar, obras promovidas pelo regime abriram novas estradas em terras indígenas, processo que catalisou a entrada de novas doenças, mortes e destruição ambiental entre essas populações.

A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha

Dário Kopenawa Yanomami representou seu pai, Davi Kopenawa, que não viajou para o Festival do Rio por motivos de força maior. Em sua fala, o líder celebrou a oportunidade de representar seu povo, citando os 32 anos da demarcação e homologação da Terra Indígena Yanomami, maior terra indígena do Brasil, uma “conquista do meu pai, conquista do poder da mãe natureza, do poder do xamanismo”. 

Apesar dos avanços, a ganância de garimpeiros e madeireiros ainda ameaça a estabilidade dos povos originários na região. Dário disse que espera que o filme sirva para promover o respeito à causa indígena e à integridade de todos os povos originários. Ele também celebrou a chance de projetar seu modo de vida para diferentes audiências do Brasil e do mundo. “A gente está mostrando a nossa identidade, a nossa cultura, a nossa língua, nosso canto, nosso pensamento e o nosso conhecimento”, contou.

A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha

Os diretores chegaram à Terra Indígena Yanomami com algumas ideias formadas sobre como o projeto seria, mas ao chegar lá, se abriram às novas possibilidades que se apresentavam diante deles. Lá eles filmaram um importante ritual para os yanomami, o rito funeral dedicado ao sogro falecido de Davi Kopenawa. Para Dário, deixar que essas cerimônias fossem registradas pela câmera foi um ato de coragem que rendeu muitas conversas entre a família para ser aprovado. O resultado, para ele, foi uma “grande homenagem” ao homem que iniciou seu pai no xamanismo.

“O Davi convida a gente para filmar essa festa e essa festa se torna o coração do filme”, recorda Gabriela. “Para a gente foi muito forte. O livro termina na morte dos xamãs e a gente começa o filme na morte desse grande xamã.” Bernard Machado, diretor de fotografia, disse que buscou registrar esses movimentos sem “um olhar colonialista”, usando suas próprias experiências como fiel de uma religião de matriz africana para assumir a postura mais respeitosa diante dos indígenas.

Gabriela Carneiro da Rocha, Dário Kopenawa Yanomami e Eryk Rocha na sessão de gala de A Queda do Céu, realizada na noite de sexta-feira (11), no Estação NET Gávea - Foto: Davi Campana
Gabriela Carneiro da Rocha, Dário Kopenawa Yanomami e Eryk Rocha na sessão de gala de A Queda do Céu, realizada na noite de sexta-feira (11), no Estação NET Gávea - Foto: Davi Campana

Como boa parte dos ritos ocorre à noite, o filme tem muitas sequências mais escuras. Eryk afirmou que nunca cogitou usar luzes artificiais no projeto para não atrapalhar um rito sagrado. “A gente assumiu, na própria linguagem do filme, a penumbra como uma força autônoma”, disse o cineasta, que ressaltou o trabalho de som do filme, onde reside boa parte de sua expressividade narrativa, incorporando muitos cantos indígenas no corte final.

Em tempos em que o mundo sofre com o efeito das mudanças climáticas, fazendo com que muitas vezes pareçam não haver perspectivas para um futuro onde impere a justiça ambiental, A Queda do Céu evidencia que tanto o modo de vida quanto o pensamento yanomami podem ser chaves importantes para o debate internacional sobre o tema. 

Na cosmologia, o céu cairá quando nenhum xamã estiver mais vivo para sustentá-lo, processo que é acelerado pela destruição das florestas. No filme, Kopenawa faz um alerta para quem coloca o lucro na frente do futuro da Terra: "Vocês irão perguntar a nós, Yanomami: 'Por que tudo está se transformando?' E então vocês, os napë [brancos], irão despertar e irão chorar. É uma vingança do mundo.”

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