Publicado em 07/11/2018

por Ricardo Vieira Lisboa

É um excerto do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa que dá o título ao filme de Flávia Castro; excerto que é lido mais de uma vez pelas personagens: “meu passado/não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,/está confusamente deslembrado/e logo em mim enclausurado fui”. Só que o caos identitário pessoano (nas suas múltiplas encarnações heteronímicas e nos seus desencontros fingidos) choca com a lisura quase anônima de Deslembro.

Neste filme tudo está perfeitamente polido, não há superfícies irregulares, não há desvios nem desleixos. E diante disso a minha mão escorrega, não tem por onde se agarrar: é um filme impecável e por isso lúbrico, esquivo. Só que esse lustro não é bem o de pedra preciosa, mas, antes, o de estátua de bronze em lugar de passagem, por onde todas as mãos afagam o pé do monumento até este ficar dourado. É a primeira longa-metragem de ficção da realizadora e demorou quase uma década a ser produzida. Nesse processo (entre laboratórios de escrita, coproduções internacionais, e demais demandas e demãos) qualquer espontaneidade de obra de estreia se esvaiu na segurança de um retrato doce e íntimo, é certo, mas segundo o olhar de um taxidermista ou de um pintor de naturezas mortas.

Mais triste pelo facto de se perceber que muito daquilo que é a história do filme é profundamente pessoal: um despertar para a idade adulta de uma filha de pai vítima da ditadura militar brasileira e de padrasto militante da resistência chilena. Depois da Diário de Uma Busca (2010), a realizadora prossegue o seu mapeamento afectivo das sequelas familiares que os espíritos revolucionários da esquerda dos anos 60 e 70 deixaram junto dos seus entes queridos. Raízes culturais estilhaçadas por diferentes nacionalidades, hábitos e línguas. Isso é o que de mais belo há em Deslembro: a verdade que se descobre no processo de “adaptação” de uma adolescente a um novo país, segundo uma percepção sensorial feita de chuva, areia, cheiro a livros, baseados, sexo... Verdade essa enclausurada num perfeito diorama histórico.




Voltar