Publicado em 07/10/2024

Sérgio Machado, Luiz Carlos Merten e Diogo Dahl durante sobre o documentário 3 Obás de Xangô — Foto: João Vitor Figueira
Sérgio Machado, Luiz Carlos Merten e Diogo Dahl durante sobre o documentário 3 Obás de Xangô — Foto: João Vitor Figueira

Por João Vitor Figueira

Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé são três colossos da cultura brasileira, donos de um conjunto de obras que ajudaram a consolidar um ideário vibrante, místico e sedutor sobre a Bahia. Esse imaginário também contribuiu muito para a autoestima dos baianos, defende Sérgio Machado, diretor de 3 Obás de Xangô, documentário sobre a arte e a religiosidade do trio de influentes arquitetos da identidade brasileira.

Ao apresentar o projeto para Wagner Moura, o cineasta ouviu do amigo de longa data, com quem trabalhou em Cidade Baixa (2005), que a obra do trio contribuiu para que ele crescesse com a “certeza de que a Bahia era o centro do planeta”. Também imbuído desse orgulho alicerçado na força da cultura de sua terra natal, Machado relata que não se abalou quando se mudou para São Paulo e descobriu que paulistas usavam o adjetivo “baiano” como um termo depreciativo.

3 Obás de Xangô reconta a relação do trio de baluartes que cultivou uma amizade marcada por ternura e admiração mútua durante muitas décadas. Era comum que os amigos trocassem cartas que irradiavam tintas fortes de amor fraterno, documentos que teriam sido o foco principal do filme até o diretor encontrar uma tese que lhe instigava mais.

“A amizade deles é bonita. Eles são muito apaixonados, mas as cartas estão sempre dizendo ‘meu querido’, achei que não era o suficiente para fazer um filme”, comentou Machado ao apresentar seu mais recente longa-metragem, que integra a competição principal da Première Brasil, ao público que compareceu ao Cine Odeon - CCLSR na tarde do último domingo (7). “Me interessou falar dessa amizade, mas falar também da fundação de um imaginário baiano. A minha tese, e não sei o quanto isso fica claro no filme, é que a Bahia foi inventada por essas mães de santo, por essas mulheres negras fortes”, completou o diretor.

3 Obás de Xangô, de Sérgio Machado
3 Obás de Xangô, de Sérgio Machado

As imagens de arquivo utilizadas no documentário reforçam, sim, a visão de Machado. Além da amizade e do axé, o que também une os três artistas é o reconhecimento de que suas obras são fruto das observações que faziam do cotidiano baiano, da vida coletiva e espiritual vivenciada nos terreiros, da labor dos pescadores que tiram o seu sustento do mar, do horizonte exuberante da costa de Salvador e da rotina urbana dos excluídos.

Além disso, Machado ressaltou no bate-papo com o público que o filme apresenta um trio de protagonistas incríveis, mas traz coadjuvante que são igualmente fascinantes e fundamentais para a religiosidade e cultura popular da Bahia, como Camafeu de Oxóssi, Mãe Senhora, Mãe Stella de Oxóssi e Joãozinho da Gomeia.

3 Obás de Xangô, de Sérgio Machado

O cargo de obá, concedido a Amado, Caymmi e Carybé, foi criado no terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá por Mãe Aninha em 1936. O título traz consigo a responsabilidade de representar o terreiro perante a sociedade, como um embaixador. “O obá assume uma dimensão cívica e política para os trabalhos religiosos”, diz o cantor Gilberto Gil, que herdou o título de Caymmi, em depoimento para o filme. Outro obá atual que aparece no filme é o escritor Muniz Sodré.

A produção de 3 Obás de Xangô teve início em 2018, mas a relação de Machado com um dos biografados vem de longa data. “Eu faço cinema porque o Jorge Amado, um dia, sem ter nem porquê, viu um curta que eu fiz na faculdade [Troca de Cabeças], que tem o Grande Otelo. Ele mandou um bilhete para o Walter Salles, que estava filmando com o Walter Carvalho, e falou, ‘acho que esse menino tem algum talento, se não tiver, vocês ignorem’”, recordou o diretor. 

Esse incentivo abriu portas para o cineasta, que atuou como assistente de direção de Walter Salles em produções como Central do Brasil, O Primeiro Dia e Abril Despedaçado antes de estrear como diretor de longas-metragens.


3 Obás de Xangô, de Sérgio Machado

O ponto de partida para o desenvolvimento do filme se deu quando Walter Carvalho ofereceu para Machado caixas e mais caixas de material bruto que não foi utilizado em um média-metragem documental sobre Jorge Amado filmado por João Moreira Salles na década de 1990. “O João foi generosíssimo. E fiquei feliz por ser um material filmado pelo Waltinho [Carvalho], um cara importantíssimo na minha história. É um filme sobre irmandade que parte de um ato de generosidade”, agradeceu o diretor. Além das imagens concedidas por Salles, que representam cerca de 30% do filme, foram produzidas mais de 20 novas entrevistas e utilizados outros materiais de arquivo.

Cada um dos três artistas apresenta um pouco de seus processos criativos no longa-metragem, que falam sobre suas obras e trajetórias. Em determinado momento, Jorge Amado recorda de um comentário feito por um crítico que dizia que ele “não passava de um romancista de putas e vagabundos” e completa “nunca me fizeram um elogio maior”. Há ainda uma imagem de arquivo que traz Caymmi cantando “Oração da Mãe Menininha” com os olhos marejados e outra em que o músico explica que desenvolveu a sonoridade de seu violão tentando incorporar a marcação rítmica de instrumentos percussivos que ouvia na rua.

3 Obás de Xangô, de Sérgio Machado

Além da literatura, da música e das artes plásticas, outras artes também invadem o longa, incluindo a fotografia, através da inserção das fotografias de Pierre Verger, e o próprio cinema, uma vez que o longa inclui trechos de Jubiabá (1987) e Tenda dos Milagres (1977), adaptações da obra de Jorge Amado dirigidas por Nelson Pereira dos Santos.

Ao longo do debate, Machado ressaltou muitas vezes o tema do protagonismo feminino nas religiões de matriz africana, ressaltando uma dinâmica que se reflete no filme. O diretor citou uma fala de Muniz Sodré apresentada em 3 Obás de Xangô que ressalta o quanto a cultura do candomblé abriu espaço para lideranças femininas que outros círculos da sociedade brasileira não ofereceram por muitos séculos.

O diretor ainda disse que dirigir este projeto o fez se reconectar com suas raízes religiosas. “Minha mãe era uma referência muito forte para mim e uma militante na luta contra a intolerância religiosa na Bahia. Minha casa era um ponto de encontro de discussões. Fui criado ouvindo as conversas dela com Mãe Stella de Oxóssi e Dona Olga do Alaketu”, recordou.

Sérgio Machado, diretor de 3 Obás de Xangô
Sérgio Machado, diretor de 3 Obás de Xangô

No início do debate, o crítico de cinema Luiz Carlos Merten, que mediou a conversa, disse que o discurso sobre amor e fraternidade que o filme apresenta são fundamentais e necessários para os dias de hoje, mas brincou ao citar outros filmes do cineasta que retratam justamente rompimentos de amizades, como Cidade Baixa e O Rio do Desejo (2023).

“Acho que nos meus filmes têm sempre uns caras meio bobos brigando e girando em torno de um sol feminino forte”, avalia o diretor ao citar seus trabalhos de ficção. “Queria que tanto Cidade Baixa quanto O Rio do Desejo fossem celebrações do desejo, mas olha como as pessoas são burras ao ponto de brigar e se matar ao invés de foder [risos]. Acho que meus filmes têm uma coisa fabular de dizer: preste atenção, se você não for feliz no tempo que tem, você só vai causar destruição. Em 3 Obás de Xangô não tem isso, é só a celebração dessa amizade.”

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