Desmemórias Álvaro André Zeini Cruz escreve sobre "Deslembro", de Flavia Castro, e "Mais triste que chuva num recreio de colégio", de Lobo Mauro
por Álvaro André Zeini Cruz
Numa das melhores cenas de Deslembro, Joana, órfã de um ex-guerrilheiro assassinado pelo regime militar, tenta demover o padrasto da ideia de se engajar na luta armada. Ela solta: “Dane-se a luta de classes”. A voz de um vizinho a apoia, mas a intromissão é retrucada: “Cala a boca, fascista”. “Vai pra Cuba!”, ecoa a tréplica.
O filme de Flávia Castro se passa em 1979, mas é fácil tropeçar num diálogo como este no Brasil de 2018. Talvez o próprio título explique esse retorno: o prefixo antes do verbo e a conjugação não sugerem um mero esquecimento, mas um ato de esquecer deliberadamente, para crer numa outra história. A ditadura está nesse processo de “deslembramento”, que, provavelmente, advém do apagamento institucional dado sobre essa página. Isso gera, quando não uma incompreensão, uma parcialidade problemática, que tem sido recorrente na representação do regime desde o cinema pós-retomada. Deslembro se insere nesse recorte ao tentar dar conta da complexidade do contexto com um roteiro inchado e esquemático, em um painel que ainda se revela incompleto, uma vez que Joana pouco explora a nova realidade para além dos limites do apartamento.
Ironicamente, há um confronto entre Deslembro e o curta de abertura da Première Brasil. Em Mais triste que chuva num recreio de colégio, a câmera se ergue da terra para encontrar um corpo que, disforme pela falta de foco, será contraposto à imagem nítida de uma mosca. Esse movimento novamente se repete, mas agora para encontrar o Maracanã, em obras superfaturadas. Na camada sonora, o arquivo de falas encadeia um discurso que parte de trechos da famigerada sessão do impeachment de Dilma Rousseff, para, em seguida, intercalar falas de Michel Temer sobre a necessidade da reforma trabalhista e a narração do sete a um na Copa do Mundo. Essa analogia entre o discurso aparentemente progressista e a goleada solidifica a ideia bem brasileira de que o progresso emana da ordem. Mas a ordem recai cruel sobre os mais pobres, “homens-moscas”, vistos e tratados como insetos. Ao erguer-se das “raízes do Brasil”, a câmera encontra esse corpo e sobre ele, o concreto. O progresso ordenado ergue-se do lombo incógnito dos trabalhadores.
Voltar